segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O que pensamos, do que temos medo, o que amamos, nossas crenças não podem evidenciar-se. Não totalmente, menos ainda de uma vez por todas. É preciso negociar o que de nós pode participar da vida pública e o que deve permanecer guardado como reserva existencial.
É possível existir verdade demais em uma alma para que ela se exponha e com isso comprometa sua sobrevivência. É preciso economizar as exibições.
O contrário é também verdadeiro. Neste jogo ambivalente, muito pouca verdade em uma alma, ou uma verdade que faz seu portador pequeno demais, reivindica grandes mentiras em um desempenho.
Verdade demais ou de menos, mas todos têm algo a escamotear. A isso chamamos de interioridade.
Aquela mulher tem envolvimentos questionáveis. Todos já sabem e ninguém toca no assunto. Não convém ir às últimas conseqüências. Talvez porque lhes sejam muito bons seus favores sexuais, ou muito útil sua candidatura iminente a próxima maldita. Ela segue sua rotina de culpa e apreensão. Qualquer dia desses o seu mundo desmorona.
Jesus faz escolhas sintomáticas. Sensível demais com quem ninguém se importa. Gente já assentada nos espaços organizados para que a vida de todos prossiga sem perturbação. Mulheres, doentes, pecadores, malditos, por eles demonstra afetos perigosos. Sua linguagem o classifica entre revolucionários. Fala de um Reino para pobres e incita à busca de justiça. Mas o que é mais grave, parece ficar à vontade demais com os proscritos, demonstra com eles sentir-se em casa. Veja como olha para essa gente. Veja como bebe, come e ri. Entre os demais mestres há uma intuição desesperada de que ele é uma ameaça, de que suas intenções são profanas. De que esconde o que a todos escandalizaria.
Fariseus e mestres da Lei, estes despendem enorme energia no jogo. Dos três, Jesus, a mulher e os guardiões da religião, estes são os mais miseráveis. Todos padecem, mas ninguém precisa tanto esconder quanto eles. Ninguém lustra com tanto rigor e piedade o que aos outros aparece. Jesus anda revoltado com o seu procedimento. Já os chamou de “sepulcros caiados”, hipócritas.
E o trágico acontece. A mulher foi flagrada. O que pode ser mais proibido no jogo da moral que se deixar flagrar? Surpreendida em condições indisfarçáveis, seu sexo condenável de tão ardente, ou seria, ardente de tão condenável, acende escrúpulos e ardis. Como são perspicazes os escandalizados. O que mais desnudaria o perigoso mestre nazareno que a nudez de uma pecadora? Pois castrar o erótico é o que mais se aproxima de reprimir a crítica.
Jesus está cercado de gente quando o ruído raivoso interrompe seus ensinamentos. Homens de passos decididos, olhares fulminantes e um trapo humano nas mãos. Na boca, o rigor da lei; já no chão, a vergonha que despiu de humanidade a mulher; em seus corações, armadilhas.
O texto frio da lei é fluente no simulacro da moral. A letra grafada e morta não vasculha corações nem pergunta por afetos, não ilumina interioridades nem chora misérias, mata. Pronuncia-se a Lei com reverência, apedreja-se pessoas, portanto, com fervor. A lei diz para apedrejar e você, o que diz? Quem está ali conclui rápido a derrocada incontornável do mestre. Não dá para driblar a tensão. E todos já sabem que escolha ele fará.
Sua resposta é uma sátira. Um deboche. Uma charge. Porque todo assunto muito sério é uma piada. Jesus curva-se em desdém à gravidade da proposição e escreve com o dedo no chão. Galhofa. Sua escrita evade o ambiente e ri da austeridade dos zeladores da moral.
Neste instante há uma superposição de cenas. Fariseus e mestres da dura escrita da Lei com cenhos franzidos, pedras nas mãos e um jogo de poder funesto na alma, encena o primeiro plano. Ausentando-se para o segundo plano, Jesus, de cócoras, lúdico, escrevendo com o dedo no chão. Sua escrita brinca e dança na areia. Insuperável escolha. Quem olha não os tem no mesmo foco. Se o rigor oportuno dos fariseus é o que amamos, a imagem satírica de Jesus embaça, quase desaparece. Se a cena despretensiosa e estética do mestre, que rabisca desenvolto no chão, é o que nos magnetiza, então os aflitos e tensos fariseus esvanecem ao fundo. O Cristo que risca trivialidades no chão faz poesia e chama de triste ficção o flagrante que mente a vida e anuncia a morte.
Mas doutrinadores entendem de emboscadas morais e tocaias linguísticas, não de escritas leves e despretensiosas. A mesma poesia que salva Jesus da sanha por doutrina e dominação é desespero para os demais. Ah, se ele pudesse ficar ao chão, rabiscando, descolado daquele mundo, desligado daquela lógica! Eles insistem na inquisição e na morte da mulher. Cristo se ergue, dedos sujos de tanto que brincou no chão, às inquirições questiona, pergunta às interrogações e flagra os flagrantes. Quem não tiver pecado atire a primeira pedra. Quem não se flagrar em segredos leve a sério a sua religião. Descobrir-se protagonista da grande piada é a pior vergonha. Um a um, todos se retiram.
Enquanto isso, Jesus mantém-se curvado e entregue aos rabiscos na areia. É assim que se escreve, com a fluidez de quem o faz sem a pretensão poderosa de se perpetuar. O resto é doutrina, é lei, é flagrante de morte. Ele dá as costas à escrita pretensiosa de ocupar o mundo, como se o mundo fosse o que aparece. Escreve no fugidio pó o traço da misericórdia. A escrita na areia que o vento leva é tão livre que torna aquele ambiente insustentável para os rígidos escribas. Apenas quem escreve conteúdos para serem esquecidos está apto a desenhar o belo e a liberdade. Apenas os riscos poéticos, espalhados no chão e que logo serão lançados pelo vento no imponderável horizonte, somente eles libertam os pecadores de seus cruéis flagrantes.
Não há mais ninguém ali, além dos dois. Estão livres, por enquanto. A mulher, do apedrejamento. Jesus, de mais uma arapuca. Mas os fariseus e mestres da lei, estes foram condenados a manterem a todo custo o falso brilho de sua aparência.
A mulher volta à vida. Jesus fica um pouco mais por ali, escrevendo na areia e saboreando, com um breve riso nos lábios, a sobrevida.
Até que em um dia desses, sua poesia se torne um crime e sua liberdade, uma cruz.

Elienai Cabral Junior