Todo texto tem em alguma medida o sonho de alterar a realidade, e parte do pressuposto de que para isso bastará alterar a realidade dos seus leitores. Talvez mais do que qualquer outro escritor bíblico, o autor de Lucas/Atos investiu pesado nesse aspecto “formador de uma cultura” do seu discurso. Seu texto é pontuado por momentos decisivos que requerem um posicionamento do leitor, e estamos agora postados sobre o mais exigente e memorável desses pontos fulcrais. É o momento da improvável e custosa encarnação, na vida real, de um sonho – o sonho encapsulado no modo de vida e no modo de morte de Jesus. Lucas é sua única testemunha, e seu testemunho é este: a nova e ideal comunidade dos três mil e tantos, de cujas luzes temos nos ocupado, é para ser encarada como primeira moldagem de um vaso adequado para reter e distribuir mundo afora mundo o fluido sagrado da herança de Jesus.
Uma comunidade é definida pela intersecção dos discursos que a originaram, e Lucas trata de deitar muito claramente as diretivas que deverão caracterizar o legítimo movimento do reino. Como vimos, e o fio da narrativa deverá nos dar oportunidade de confirmar, neste dia de Pentecostes os desbravadores do reino dobraram-se à exigente persuasão do espírito, de que Jesus estava certo ao sustentar que arrepender-se é mudar o mundo e pecar é omitir-se. Desafiada e confrontada pela exposição de Pedro, uma pequena multidão ousou adentrar de mãos dadas esse mundo além do perdão, em que meros homens abraçam o exemplo não-condicionado de Jesus, encenam continuamente a sua subversão e inauguram uma comunhão tão escandalosamente generosa, desarmada e inclusiva que acabará representando ameaça a todas as manifestações controladoras de poder.
Antes de deixarmos para trás esta visão da glória de uma comunidade inteiramente humana (e, portanto inteiramente divina) e avançarmos para o confronto dessa sociedade revolucionária com um mundo avesso a mudança, será necessário fazer outra digressão. Porque, se enfatizamos cada um dos discursos presentes (todos eles não-condicionados e, portanto subversivos), não traçamos ainda os discursos ausentes – aqueles que não fazem parte da exposição e da incorporação da boa nova no livro de Atos, mas acabaram ganhando destaque nas obsessões e ênfases da igreja institucional até os nossos dias.
Se é objetivo do autor de Atos estabelecer quais devem ser as expectativas e as prioridades de uma comunidade que se proponha a levar avante o legado de Jesus, devemos crer que ele assenta a sua posição tanto pelo que diz quanto pelo que não diz. Denunciar os discursos ausentes, que intrometeram-se mais tarde na ideologia cristã, servirá não apenas para contrastar a límpida comunidade do reino com a turva igreja institucional que terminaria por sequestrar a sua herança; deverá servir também para elucidar porque esses discursos se intrometeram. Ficará evidente que a igreja apossou-se desses conceitos piedosos a fim de tornar a experiência cristã mais devocional e menos existencial – isto é, tornar passível de domesticação o que era incontrolável, tornar condicionado o que era não-condicionado. Nesse processo, terminou por ocultar o desafio e a integridade da boa nova do reino, tornando nula qualquer alegação de sua relação com ele.
O primeiro desses discursos ausentes, que não comparece no testemunho de Atos mas recebeu tremendo destaque depois, a ponto de tornar-se absolutamente central na articulação ideológica do “evangelismo”, é a questão de céu e inferno.
Porque na descrição do jorrar do espírito, na apresentação da boa nova por parte de Pedro e na primeira “conversão” exemplar não há nenhuma promessa de vida após a morte – nenhuma visão do paraíso, nenhuma ameaça de inferno1.
O discurso de Pedro, que parece ter articulado o que o espírito estava dizendo a todos e através de todos, pode ser resumido da seguinte forma: Jesus, o homem de Deus cujo ensino íntegro os homens consideraram insuportável ao ponto de assassiná-lo sem motivo por essa razão, Deus o fez Senhor e Messias. Agora que a própria morte mostrou-se incapaz de retê-lo, e estando em posição indistinguível da posição de Deus, ele confere que todos sejam capazes de compartilhar da lucidez do seu modo de ver a vida, de viver e de morrer. Ou, numa versão ainda mais resumida: Deus conferiu ao Marginal a posição de destaque, a fim de que abracemos a sua estirpe de marginalidade e dediquemos nossa vida à inclusão dos marginais.
De uma forma ou de outra, o argumento decisivo da argumentação de Pedro (e, como veremos, de toda apresentação da boa nova no livro de Atos) reside na singularidade de Jesus. A ressurreição é mencionada como desconcertante confirmação dessa singularidade, mas Pedro não oferece nenhuma indicação de que essa ressurreição seja ela mesma algo menos do que singular – isto é, seu argumento não estende a vida após a morte como padrão ou promessa adicional. Sendo assim, quando seria o momento mais favorável para pressionar o seu público com os horrores da punição e as recompensas da eternidade, Pedro se abstém de fazê-lo: sua ênfase permanece no perdão dos pecados, isto é, na reparação das omissões passadas, e no arrependimento, isto é, na adoção (no momento presente) do modo de vida de Jesus. Seu apelo é “salvem-se da mesquinheza desta geração.”
Em contraste com essa postura, a igreja acabaria deslocando por completo o argumento decisivo de seus esforços evangelísticos, transferindo-o da singularidade de Jesus para a ameaça do inferno e a oferta do céu. De longe, a forma mais comum de se apresentar a fé cristã (e isso retém em comum os dois lados da igreja formal separados pela fissura da Reforma), é oferecendo-se ao ouvinte uma chance de “salvação” – apresentada, bem-entendido, como uma oportunidade de escapar da condenação do inferno e abraçar a vida eterna no céu2.
De acordo com essa visão, converter-se não é assumir o perdão e adotar a vocação de alterar a tessitura do mundo, mas aceitar o convite de beneficiar-se pessoalmente do sacrifício de Jesus de modo a, por um lado, escapar de uma punição sem pausa no inferno e, por outro, ganhar a vida eterna no céu ao lado dos que você ama3.
Agora, se o livro de Atos descreve os primeiros passos do que viria a ser conhecido como igreja, e se deita as diretrizes apostólicas para se “ganhar pessoas para Jesus”, por que céu e inferno não são mencionados – não só nestes dois primeiros capítulos, mas até o final? Por que a recompensa futura e a punição incessante não recebem a ênfase que a igreja aprendeu a dar a ela?
Este não será o espaço para analisar o processo histórico através do qual a igreja acabou colocando céu e inferno no centro do seu discurso; não será nem ao menos necessário estabelecer a distinção entre a idéia de céu e inferno, como foram entendidos depois, e o conceito de ressurreição dos mortos (e renovação da terra) que consistia basicamente na estirpe de eternidade aguardada pelos judeus no tempo de Jesus4.
Bastará, em primeiro lugar, que tenhamos em mente que o discurso da eternidade está por completo ausente dos procedimentos exemplares da igreja nascente no livro de Atos e que não aparece no Novo Testamento associado à transmissão da mensagem e do legado de Jesus. Como os autores do Novo Testamento viam a coisa, evangelizar ou estender ao mundo a boa nova do reino não é acenar diante das pessoas com um ingresso gratuito para o paraíso, nem ameaçá-las com uma rampa até os fogos eternos.
Em segundo lugar, devemos aprender a reconhecer o papel que céu e inferno passaram a desempenhar na ideologia cristã. Alan F. Segal observa que “visões de céu e inferno prestam serviço à evangelização”, e disso resta abundante evidência mesmo nos nossos dias. Recorrer a céu e inferno como argumento decisivo na evangelização tem o duplo efeito de tornar a boa nova mais “espiritual” (isto é, mais palatável e menos exigente, no sentido de ter menos consequências para esta vida) ao candidato a cristão, e apelar para o instinto de “autopreservação emocional” que todos os homens têm em comum. Quem não se sentirá compelido a esquivar-se do sofrimento e a ganhar o gozo, numa transação que não requer esforço algum de sua parte?
Porém não é só na hora de angariar convertidos que céu e inferno se mostram ferramentas úteis. O domínio da vida eterna tem ainda uma poderosa função controladora sobre as pessoas. Numa sociedade que crê nesse tipo de coisa, quem tem o monopólio sobre o além tem também o controle das pessoas nesta vida, e pode manejá-las a seu bel-prazer.
Tanto no céu quanto no inferno os mortos servem para tornar concretas e legitimar as estruturas éticas e hierárquicas de uma sociedade. Aqueles que retêm as chaves do paraíso tornam-se logo os mais temidos e legítimos representantes do poder terreno, sendo que seu poder é exercido em dois níveis. Primeiro, as pessoas ficam mais fáceis de controlar porque crêem que a preservação de suas almas no além depende de que sigam à risca as expectativas e normas deitadas pelos líderes do presente sistema. Segundo, como a vida eterna oferece um futuro em que todas as injustiças serão corrigidas, qualquer tentativa de se implementar um mundo justo ainda nesta vida é vista com maus olhos, algo beirando ou ultrapassando o limite da heresia.
Como se vê, o resultado da adoção do discurso de céu e inferno é precisamente o oposto daquele que, acabamos de ver, ocasionou a distribuição do espírito subversivo de Pentecostes. Em Atos a boa nova é a transformação do mundo; no discurso de céu e inferno a boa nova é que este mundo não precisa ser transformado. Em Atos a boa nova origina uma comunidade não-condicionada que representará constante ameaça ao estado de coisas, estando destinada a “virar o mundo de cabeça para baixo”; no discurso de céu e inferno, a boa nova é usada para legitimar e sustentar um estado condicionado de coisas, sequestrando o apelo universal da imagem de Jesus enquanto garante que os efeitos de sua popularidade se mantenham sob controle.
Não é de estranhar, portanto, que no livro de Atos céu e inferno permaneçam à margem do discurso da comunidade do reino, porque seus membros tomam por absolutamente central manter vivo neles mesmos o caráter não-condicionado de seu mestre. Permanecerá uma comunidade viva, no sentido em que estarão inteiramente mergulhados na solução das questões sempre cambiantes desta vida. Nada que possa ser usado como ferramenta de dominação fará parte do seu vocabulário ideológico, porque a boa nova deverá permanecer libertadora em todos os sentidos.
Nesse sentido, os revolucionários do reino estão mantendo-se inteiramente fiéis às ênfases de Jesus, que se mostrou muito mais disposto a apresentar desafios e soluções para esta vida do que a prometer os confortos da próxima. Nos evangelhos se Jesus distribuía curas, ou até mesmo ressurreições, era porque queria resgatar a dignidade e reforçar os desafios desta vida. Ele ressuscitava porque, muito claramente, cria que as pessoas ainda tinham a sua missão – a missão dele – para cumprir, e porque cria que na balança das eras é só este lado da eternidade que conta. Sua proposta incessante era de que que a experiência humana na terra requer a redenção e a reviravolta da mudança de critérios, cujo resultado é a paulatina implantação do reino. Mesmo o perdão dos pecados, com o qual o batismo estava associado, era oferecido como libertação destinada a derrubar qualquer impedimento que se interpusesse entre o ser humano e o assombro da transformação do mundo – este mundo.
Foi precisamente dessa forma que os romeiros de Pentecostes entenderam a sua vocação; não como a certeza da vida eterna no céu, mas como a certeza da urgência dos desafios desta terra. Sua conversão não estava fundamentada na esperança do paraíso, que pelo que sabemos não foi nem sequer mencionado. Quem investe todo o conteúdo da sua fé na garantia de uma felicidade futura age como que não tem pressa, e a postura dos revolucionários do reino é de absoluta urgência. Por isso despojam-se radicalmente de todo embaraço, por isso estão sempre juntos, por isso prestam contínua assistência uns aos outros e a todos que estão chegando: o céu pode esperar, mas a cura deste mundo exige atenção imediata.
Visões de céu e inferno prestam serviço à evangelização.
Alan F. Segal, Life After Death
Paulo Brabo