segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Conhecendo um pouco sobre Rudolf Bultmann
“A fé verdadeira em Deus não é o reconhecimento que se dá a uma imagem de Deus, por mais correta que seja; é, antes, a prontidão para o fato de que o eterno quer encontrar-se conosco, a cada momento, no presente, nas mais variadas situações da vida.”
Rudolf Bultmann tornou-se uma das figuras mais controvertidas dentre os teólogos cristãos do século passado. Aspectos secundários de seu pensamento teológico são usados por seus críticos, geralmente ligados ao fundamentalismo teológico, a fim de denegrir com rótulos absolutamente falsos o teólogo alemão.
Nasceu em 1884, na cidade de Wiefelstede (Oldenburg), na Alemanha, e, desde a mais tenra idade, foi marcado pela intensa religiosidade de seu lar. Sou avô paterno trabalhou como missionário em Serra Leoa, África, e seu pai era pastor luterano. O ambiente familiar, fortemente carregado pelo pietismo evangélico luterano, foi o fator preponderante que levou o pequeno Bultmann a estudar teologia.
Em 1903, deu início aos estudos teológicos na Universidade de Tubinga. Posteriormente, deu continuidade a seus estudos em Berlim e Marburg. Esta última é considerada seu verdadeiro lar intelectual. Obteve seu doutorado em teologia em 1910, defendendo a tese O estilo de pregação paulina e a diatribe cínico-estóica. Estava definida a sua predileção pela exegese, disciplina responsável pelo estudo científico dos textos bíblicos em suas línguas originais, e pela história da igreja primitiva.
Em 1912, obteve habilitação para atuar como professor de Novo Testamento, deixando sua marca em universidades como Marburg, Breslau e Giessen.
Criado como parcela significativa dos teólogos de seu tempo na chamada Teologia Liberal, Bultmann rompeu com a mesma, juntando-se ao novo círculo de teólogos neo-ortodoxos, ou dialéticos, liderados por nomes como Karl Barth, Paul Tillich e Emil Bruner. Após algumas divergências, num futuro não muito distante, romperia com boa parte destes pensadores.
Contestando fortemente os pressupostos da teologia liberal, Bultmann deixou o seguinte testemunho: “O objetivo da teologia é Deus, e a acusação contra a teologia liberal é esta: ela não tratou de Deus, mas do ser humano. A teologia, cujo objeto é Deus, só pode, portanto, ter a palavra da cruz como seu conteúdo; esta, porém, é um escândalo para o ser humano. E assim a acusação contra a teologia liberal é que ela se evadiu diante deste escândalo ou tentou suavizá-lo”. Resumindo, para Bultmann, o liberalismo teológico tirou o Cristo crucificado do pensamento teológico.
Com o advento do nazismo, ligou-se prontamente à chamada Igreja Confessante, grupo eclesiástico que unia luteranos e reformados em oposição aos conhecidos “cristãos alemães”, elementos que desejavam a submissão da igreja ao hitlerismo. Posicionou-se de forma clara contra o parágrafo ariano, lei que proibia a ordenação de pastores de origem judaica.
Como era de se esperar, deixou um legado de importantíssimas obras: A História da Tradição Sinótica (1921), Jesus (1926), Crer e Compreender (três volumes, lançados respectivamente em: 1933, 1952, 1960), e a clássica Teologia do Novo Testamento (1948, 1951 e 1953).
Idéias de Bultmann
Como especialista em Novo Testamento, Bultmann procurou transmitir o centro da mensagem cristã de uma forma que fosse compreensível para o ser humano de sua época, que não enxergava o mundo da mesma forma que uma pessoa do primeiro século. Sem menosprezar a historicidade de Jesus, para Bultmann o que realmente importava a respeito de Cristo era sua mensagem.
Através do kerigma, isto é, da proclamação, o ser humano é desafiado a dizer sim ou não à pessoa de Jesus Cristo. “A convicção de Bultmann foi que apenas com a proclamação da Palavra o acontecimento de Jesus se torna um acontecimento salvífico para nós; a saber, na recepção da fé”, afirma o pastor e teólogo luterano brasileiro Walter Altmann, presidente do Conselho Mundial de Igrejas.
Seguindo a corrente filosófica existencialista de Martin Heidegger, Bultmann chegou à conclusão de que a vida humana é desprovida de qualquer sentido. Tal sentido somente seria preenchido por um contato direto com Deus, obtido exclusivamente pela fé em Jesus Cristo. Temos aqui a reafirmação de um dos principais dogmas da Reforma, o conhecido sola fide, isto é, só a fé. Não obstante, a fé, para ser realmente fé, não deve se apoiar em qualquer outro meio que não seja Cristo. Comprovações históricas ou científicas, assim como a atenção demasiada a milagres, levam o ser humano a condicionar sua fé a elementos materiais.
Para o teólogo de Marburg, fé é uma auto-entrega completa do ser humano nas mãos de Deus, fé que abre mão de comprovações de qualquer espécie.
Nos dias atuais, infelizmente, o centro da pregação e até mesmo da fé cristã está sendo invertida. De um lado, grupos fundamentalistas firmam suas crenças em supostas comprovações científicas de pormenores insignificantes do texto bíblico. Não percebem que, desta forma, estão submetendo Deus ao pensamento humano. Em outra esfera, a fé tem sido um exercício baseado apenas em milagres e prodígios que visam à satisfação material das pessoas. Cristo tem sido seguido por aquilo que ele pode proporcionar, não pelo que ele realmente é, o único capaz de conceder um verdadeiro sentido à alma carente de Deus.
Por esta razão, a teologia de Rudolf Bulmann, que nada mais é do que a valorização do encontro desinteressado da pessoa com Cristo, pode ser uma ferramenta para a proclamação do evangelho ao mundo moderno.
Fontes bibliográficas:
Batista Mondin, Os grandes teólogos do século XX, Editora Teológica.
Rudolf Bultmann, Crer e Compreender, Editora Sinodal.
Rudolf Bultmann, Teologia do Novo Testamento, Editora Academia Cristã.
Autor: André Tadeu de Oliveira, jornalista e graduado em Teologia pela Universidade Mackenzie.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
QUEM É O CEGO??
Evangelho de Marcos 10:46,52
Depois, foram para Jericó. E, saindo ele de Jericó com seus discípulos e uma grande multidão, Bartimeu, o cego, filho de Timeu, estava assentado junto do caminho, mendigando.
E, ouvindo que era Jesus de Nazaré, começou a clamar, e a dizer: Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim.
E muitos o repreendiam, para que se calasse; mas ele clamava cada vez mais: Filho de Davi! tem misericórdia de mim.
E Jesus, parando, disse que o chamassem; e chamaram o cego, dizendo-lhe: Tem bom ânimo; levanta-te, que ele te chama.
E ele, lançando de si a sua capa, levantou-se, e foi ter com Jesus.
E Jesus, falando, disse-lhe: Que queres que te faça? E o cego lhe disse: Mestre, que eu tenha vista.
E Jesus lhe disse: Vai, a tua fé te salvou. E logo viu, e seguiu a Jesus pelo caminho.
O nome do cego é Bartimeu, Bar = filho; Timeu = afortunado. Ele é filho de Timeu. A história começa com uma sutileza impressionante. Bartimeu é um filho afortunado, mas era cego. O cego que enxerga. Os que enxergam, não veem.
O texto diz que o cego estava assentado junto do caminho, mendigando. Ouvindo que era Jesus de Nazaré (vejam a sutileza do texto) o texto diz: Jesus de Nazaré. Quando o cego percebe que ele está passando, começou a clamar, e a dizer filho de Davi tem misericórdia de mim. Notaram a sutileza no texto? Ele ouviu que Jesus de Nazaré estava passando, mas quando começou a clamar ele grita: Filho de Davi! Perceberam a sutileza? Porque Jesus de Nazaré estava passando e ele clama pelo filho de Davi?
Quase sempre damos muita importância as exterioridades do texto, perdendo a essência da mensagem que está por traz das linhas escritas.
Para a multidão e para os fariseus que queriam pegar Jesus em alguma falta, Jesus é apenas Jesus de Nazaré. Assim o texto denuncia que muitos que enxergam não conseguem ver e muitos cegos estão vendo. Jesus está denunciando um grupo de pessoas que tem olhos mas não veem, que tem ouvidos mas não ouvem.
Enquanto muitos estão discutindo exterioridades como: devemos comer sem lavar as mãos ou não, que tipo de música devemos tocar nas igrejas, que tipo de roupa devemos vestir, quem está qualificado para o ministério e etc.
Assim como o texto denuncia a cegueira dos que viam, denuncia todo aquele que enxergando, promove apenas o mesmo espírito dos fariseus defensores da religião, mas só enxergam Jesus de Nazaré, e não o filho de Davi.
Meus amigos, tem muito “cego” enxergando mais do que muitos pastores, e muitos pastores que só veem Jesus de Nazaré passando. Cegos pela sua religião, estão de mãos dadas com os fariseus, enxergando Jesus no mesmo nível da religião hipócrita, cega, cercada de estereótipos, mas sem nada dentro do coração. Zelosos por fora, mas podres por dentro.
Tem muita gente com necessidades reais que não estão nem aí para discussões, reflexões e pensadores que só estão na teoria tentando defender suas “convicções” teológicas, psicológicas, filosóficas e etc. Discutem a respeito da vida, mas não fazem nada pela vida. Falam de amor, mas são amantes de si mesmos. Conhecem as ciências teoricamente, mas sem nenhuma praticidade. Teologia? Só a acadêmica. Filosofia? Psicologia? Vão morrer com tudo isso e o pior de tudo vão passar a vida procurando chifre em cabeça de cavalo.
Pense nisso
Wagner
Depois, foram para Jericó. E, saindo ele de Jericó com seus discípulos e uma grande multidão, Bartimeu, o cego, filho de Timeu, estava assentado junto do caminho, mendigando.
E, ouvindo que era Jesus de Nazaré, começou a clamar, e a dizer: Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim.
E muitos o repreendiam, para que se calasse; mas ele clamava cada vez mais: Filho de Davi! tem misericórdia de mim.
E Jesus, parando, disse que o chamassem; e chamaram o cego, dizendo-lhe: Tem bom ânimo; levanta-te, que ele te chama.
E ele, lançando de si a sua capa, levantou-se, e foi ter com Jesus.
E Jesus, falando, disse-lhe: Que queres que te faça? E o cego lhe disse: Mestre, que eu tenha vista.
E Jesus lhe disse: Vai, a tua fé te salvou. E logo viu, e seguiu a Jesus pelo caminho.
O nome do cego é Bartimeu, Bar = filho; Timeu = afortunado. Ele é filho de Timeu. A história começa com uma sutileza impressionante. Bartimeu é um filho afortunado, mas era cego. O cego que enxerga. Os que enxergam, não veem.
O texto diz que o cego estava assentado junto do caminho, mendigando. Ouvindo que era Jesus de Nazaré (vejam a sutileza do texto) o texto diz: Jesus de Nazaré. Quando o cego percebe que ele está passando, começou a clamar, e a dizer filho de Davi tem misericórdia de mim. Notaram a sutileza no texto? Ele ouviu que Jesus de Nazaré estava passando, mas quando começou a clamar ele grita: Filho de Davi! Perceberam a sutileza? Porque Jesus de Nazaré estava passando e ele clama pelo filho de Davi?
Quase sempre damos muita importância as exterioridades do texto, perdendo a essência da mensagem que está por traz das linhas escritas.
Para a multidão e para os fariseus que queriam pegar Jesus em alguma falta, Jesus é apenas Jesus de Nazaré. Assim o texto denuncia que muitos que enxergam não conseguem ver e muitos cegos estão vendo. Jesus está denunciando um grupo de pessoas que tem olhos mas não veem, que tem ouvidos mas não ouvem.
Enquanto muitos estão discutindo exterioridades como: devemos comer sem lavar as mãos ou não, que tipo de música devemos tocar nas igrejas, que tipo de roupa devemos vestir, quem está qualificado para o ministério e etc.
Assim como o texto denuncia a cegueira dos que viam, denuncia todo aquele que enxergando, promove apenas o mesmo espírito dos fariseus defensores da religião, mas só enxergam Jesus de Nazaré, e não o filho de Davi.
Meus amigos, tem muito “cego” enxergando mais do que muitos pastores, e muitos pastores que só veem Jesus de Nazaré passando. Cegos pela sua religião, estão de mãos dadas com os fariseus, enxergando Jesus no mesmo nível da religião hipócrita, cega, cercada de estereótipos, mas sem nada dentro do coração. Zelosos por fora, mas podres por dentro.
Tem muita gente com necessidades reais que não estão nem aí para discussões, reflexões e pensadores que só estão na teoria tentando defender suas “convicções” teológicas, psicológicas, filosóficas e etc. Discutem a respeito da vida, mas não fazem nada pela vida. Falam de amor, mas são amantes de si mesmos. Conhecem as ciências teoricamente, mas sem nenhuma praticidade. Teologia? Só a acadêmica. Filosofia? Psicologia? Vão morrer com tudo isso e o pior de tudo vão passar a vida procurando chifre em cabeça de cavalo.
Pense nisso
Wagner
terça-feira, 17 de agosto de 2010
ABRINDO O CORAÇÃO DO LIVRO DE JÓ
O livro de Jó sempre me encantou. Nele até as heresias soam verdadeiras. Ele é poético, daí o problema, pois, a poesia sempre traz consigo o poder de convencer, ou, pelo menos, de nos fazer respeitar mesmo que seja a verdade besuntada de mentira.
Esta pode ser uma das razões do Livro de Jó ser tão mal percebido. Ele é tão poético que em suas falas entremeiam-se verdades e mentiras, numa oscilação que vai da mentira-mentira à mentira-verdade e da verdade-mentira à verdade-verdade, o que confunde a percepção objetiva.
E não seria isto parte da risada de Deus sobre a nossa presunção?
A fim de dar a você algumas simples “entradas” ao texto, quero que você preste atenção, nas quatro diferenciações que vêm a seguir:
1. A mentira-mentira é o engano em si, só sendo aproximadamente projetável em plenitude-simbólica na figura de Satanás. A verdade é, todavia, que nem Satanás conhece totalmente o próprio engano, pois, até mesmo para se ser o Enganador é preciso que tenha havido nesse ser um mínimo de autoengano inicial, e que veio, posteriormente, a tornar-se engano consciente e assumido como finalidade dessa malévola existência pessoal. A verdade sobre a mentira é a seguinte: somente Deus conhece o que é o engano! Nenhuma de Suas criaturas chegou até ao abismo do Abismo. Há um limite para as criaturas até no Abismo. E o limite do Abismo é o abismo do Mistério de Deus, que nenhuma de Suas criaturas jamais conheceu ou conhecerá em plenitude. Conhecer a Deus é o orgasmo infinito do ser!
2. A mentira-verdade é a mentira maquiada de realidades da vida aplicadas fora do contexto, o que acontece todos os dias nas mínimas coisas do nosso cotidiano, e, aparece, insistentemente, de vez em quando, até mesmo no modo como nos defendemos, escudando-nos à sombra de correções exteriores que encobrem nossas verdades negativas. Então adoecemos na alma, pois, quanto mais moralmente cristão é o consciente humano, mais tragicamente pagão, torna-se o seu inconsciente.
3. A verdade-mentira é a manipulação da verdade. Todo uso da verdade a corrompe, tira dela a verdade-de-ser, pois, ela já vem carregada com as finalidades e utilidades que a ela atribuímos, de acordo com a conveniência do momento. É a verdade para o consumo, é produto da arte de falar de Deus e da vida no palco das falsas impressões.
4. A verdade-verdade é aquela que só é possível se a procedência for à boca de Deus. Somente Deus conhece a verdade-verdade. É por isso que joio e trigo crescem juntos na Terra e não nos é possível distinguir um do outro com certeza. E toda tentativa de o fazer é mais danosa (joio é erva daninha), que existência do joio em si mesmo.
Há apenas uma coisa que os diferencia na Terra: o amor. Por esta razão, é muito mais provável que o joio é que tente arrancar o trigo do campo, que o trigo arrancar o joio de seu território. O trigo alimenta e traz vida. O joio se esconde e se aproveita dele, mas nunca perde uma oportunidade de se fazer passar por ele, e, eliminá-lo é sua melhor chance!
A questão é: o joio sabe que é joio? E o trigo sabe que é trigo? Quem o confessaria? Quem teria em si a verdade-verdade a ponto de enfrentar todos os enganos para se ver? Quem teria essa coragem? Certamente quem a possuísse não seria jamais um “joio-pleno”, pois “aquele que julga a si mesmo, não é julgado”.
O trigo sabe que é trigo? Mas se o sabe, não o alardeia com certeza que acuse a existência personificada do joio num outro ser humano. Antes, ao “cair na terra, morre; e dá muito fruto” . O joio não muda o curso da natureza do trigo, pois, o trigo só sabe ser trigo!
O poder do trigo é o fruto que dá e que se faz vida em si e em outros!
E por que introduzo esse meu livro sobre Jó falando acerca de tais subjetividades?
É que o livro de Jó é exatamente o retrato de todas essas quatro diferenciações. Ora, são essas diferenciações que podem descatastrofizar as nossas existências, sem que apelemos para as interpretações morais que excluem a história humana da Graça, e, pior: excluem a Graça de toda a história dos humanos!
Essa des-gracificação da Vida nos torna tão pagãos quanto todos os que tentam explicar o mal que acomete ao próximo sempre como paga pelo pecado.
Os cristãos ainda não se deram conta de que sua “teologia” da Graça não coincide com suas interpretações cotidianas do sofrimento humano e, muito menos, não retrata com realismo os fatos da vida. E assim, sem o saberem, tornam-se parte do fluxo religioso universal - a Teologia da Terra—, que entende a questão da dor e de tudo o que seja inexplicável, a partir de um encontro de contas exatas entre Deus e o homem, anulando, assim, a Graça.
Na Graça o “encontro de contas” acontece, mas quem paga a diferença contra o homem é Aquele que disse: “Está consumado!”
O problema é que aquelas quatro diferenciações não são formuláveis como categorias morais ou históricas visíveis.
Elas são valores e essências e só começam a ser por nós discernidos quando nossas existências chegam a conscientemente lidar com a Indisponibilidade de Deus na hora da perplexidade, e, sobretudo, com as interpretações que daí procedem.
Quando esse dia chega, só chega para nós! Ele é incompartilhável. Mesmo os “melhores amigos” correm o risco de pecar ao tentarem “entender esse dia” em nosso lugar.
O dia da perplexidade é sempre solitário. E nele todo gemido é verdade e toda verdade é gemido perplexo!
Uma vez dito isto, peço que você observe cada um desses quatro elementos na leitura do Livro de Jó, a saber: mentira-mentira; mentira-verdade; verdade-mentira; e verdade-verdade.
E mais: quero que você leia o texto de Jó transcrito da Bíblia e que é parte integral deste livro. Há pessoas que assumem que já conhecem o texto bíblico, e, portanto, não o lêem; perdendo, assim, a melhor chance que a leitura propicia, pois, chega carregada da iluminação que vem diretamente da meditação na Palavra de Deus.
Meditação, oração e submissão à revelação do Espírito Santo são os agentes que transformam a Bíblia Sagrada em Palavra de Deus em nossos corações!
Após cada bloco de leitura de Jó você achará um comentário meu. Leia-o com atenção. No rodapé de cada página você encontrará notas de esclarecimentos e outras referências bíblicas que o auxiliarão na melhor compreensão do que você lê. E, por último, trarei as minhas conclusões sobre a mensagem do livro como um todo.
Se você optar por ler apenas o texto maior e deixar de lado as demais contribuições que o livro dá a você, temo que você não entenda tudo o que lhe está sendo disponibilizado. É necessário, sobretudo, que você tenha paciência e leia tudo, conferindo, na sua Bíblia, a pertinência ou não do que aqui digo.
Caso você pare de ler o livro, ou caso você só leia o que nele lhe parecer mais fácil, não faça, por favor, comentários a respeito dele. Não poderei ter respeito por quem não conferir coisa com coisa antes de fazer seu próprio julgamento. E, assim dizendo, estou estimulando você a achar nele qualquer coisa que não seja completamente bíblica e coerente com a “tese cristã”.
Ou seja, eis aqui a confissão de fé que faço neste livro:
A Graça é dom de Deus, apropriado pela fé, que também é Graça , pois, é também dom de Deus; a qual se origina do trabalho do Espírito Santo na consciência-coração humano, pela revelação da Verdade , que é Cristo Jesus; o qual é o Princípio e o Fim—Alfa e Ômega—de toda relação de Deus com a criação e todas as criaturas, visto que Ele se-fez-foi-feito-em-si-mesmo o Cordeiro imolado antecipadamente pela culpa da criatura e de toda criação, antes da fundação do mundo; sendo que, entre os homens, Sua manifestação histórica se realizou na Sua encarnação, morte, ressurreição e ascensão acima de todas as coisas; e, foi Ele, o Cordeiro de Deus, quem estabeleceu que por Sua Graça se pode ter Vida; e, isto, não é tão somente algo que se manifesta dos céus para a terra, mas também entre os humanos na forma de duas tomadas de consciência: a primeira é que quem recebeu Graça não nega Graça, pois, quem foi perdoado tem que perdoar ; e, em segundo lugar, mediante a cessação dos julgamentos entre os homens, visto que, quem foi absolvido pela Graça de Cristo já não se oferece para ser juiz do próximo; antes pelo contrário, tal percepção induz a caminhar na prática das obras preparadas de antemão para que andássemos nelas, sendo sua maior expressão o amor com que devemos nos amar uns aos outros; e, sendo assim, para tais pessoas, guiadas pelo Espírito da Graça, a germinação de seus corações na fé em Jesus, gera o fruto do Espírito que torna toda Lei obsoleta e desnecessária para a consciência que recebeu a revelação do Evangelho. O resto é invenção humana para diminuir a Loucura da Cruz e o Escândalo da Graça.
Sabendo disto, então, faça o seguinte agora:
Ore e peça ao Espírito Santo que o ilumine e o esclareça! Faça-o com a certeza de que ao final sua mente estará vendo a sua própria dor de outra forma e a de seu próximo com reverência e silêncio solidário. E, então, seu coração vai se encher de amor e vida, o que libertará você de todo medo de ser e o fortalecerá para o prosseguimento da jornada que só cessa quando conquistarmos aquilo para o que fomos conquistados.
Quem assim faz não será condenado quando a Voz de Deus se manifestar no redemoinho.
O resultado final é que você dirá: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem”.
Extraído do livro O Enigma da Graça, de Caio Fábio
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
A mesa universal e as redentoras transgressões
Tenho desejado ardentemente comer com vocês esta páscoa antes da minha paixão; pois eu lhes digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus. Lucas 22:15,16
Toda subversão deve ser encenada: Jesus soube-o quando lavou os pés dos discípulos; São Francisco soube-o quando despiu-se literalmente diante da multidão e adotou uma vida descalça; Gandhi soube-o quando pendurou o terno e sentou-se diante da roda de fiar.
Os integrantes da comunidade do reino, que de tudo se despojaram, só não se despojarão da sua liturgia. Encenarão até o fim a sua mais característica subversão, porque não querem esquecer que é nisso que seu mestre tinha desejado ser lembrado: “perseverando todos os dias no templo, e partindo o pão de casa em casa, comiam com alegria e singeleza de coração”.
E, ao contrário do que nos tornamos habituados a pensar, a porção litúrgica da vida comum reside na segunda porção desse verso, não na primeira; está na mesa compartilhada e não no Templo. Como se verá, “perseverando unânimes todos os dias no templo” não quer dizer muito além de asseverar que os primeiros discípulos continuavam sendo unanimemente judeus. Nenhum deles encontrou incompatibilidade entre a vitalidade do arrependimento e a herança da espiritualidade judaica. Nenhum deles julgava ter adotado uma nova religião; não se consideravam “novos convertidos”, e com toda a probabilidade se mostrariam muito indignados se alguém sugerisse o contrário. Como estavam sempre juntos, e como estavam certos de que terem se dobrado à persuasão de Jesus não interrompia o fato de serem judeus – o próprio Pedro havia, afinal de contas, enfatizado em seu discurso o coração judaico de Jesus e da sua obra – continuavam a encontrar-se todos os dias no Templo de Jerusalém.
Não era em sua presença no templo que sua subversão era encenada, mas no impensável que faziam depois, comendo juntos de casa em casa com alegria e simplicidade, como quem habita um ensolarado final feliz ou uma incessante festa de casamento.
Sentar-se à mesa com alguém, em praticamente todas as culturas, é ato que pertence ao domínio do sagrado; em algumas tradições “comer juntos” envolve mais tabus, trâmites e privilégios do que dividir o ato sexual. Não é à toa que “companheiro”, que se origina no latim companis/cum panis, signifique “aquele com que se divide o pão”: comer com alguém é repartir uma plena horizontalidade, é reconhecer sem reservas uma identidade compartilhada. Dividir o pão é fundir a alma.
É justamente por isso que, em praticamente todas as culturas, a hora da refeição não é algo que se divida com todos. Convidar para comer esteve, desde sempre, associado a afinidade e critério. A mesa de cada um está por definição reservada para os amigos mais íntimos, para as relações mais bem lubrificadas, para os que habitam as proximidades do coração.
Não ignorando o poder dessa linguagem, Jesus tratou de subvertê-la, contando muitas histórias em que os convidados do banquete não são os nobres (com que todos queriam se ver associados) ou os amigos do anfitrião, mas os marginais, os despossuídos, os que não ocorreria a ninguém convidar para jantar. A aprovação de Deus, esclarece o rabi, é um banquete a que os ricos e poderosos não encontram ocasião de comparecer, mas que é revertido gostosamente em favor dos bêbados na sarjeta, das prostitutas da esquina e de todos que a vida largou desatenta pelo caminho.
Jesus encenou ele mesmo, e do modo mais exuberante, a provocação que suas parábolas prometiam. Porque, enquanto João Batista se mantinha no deserto comendo como um faquir, Jesus frequentava jantares e festas, fornecia bebida para banquetes de casamento e angariou (provavelmente com alguma justiça) a fama de comilão e beberrão1. Jesus não só sentava-se com pecadores e prostitutas, mas comia faceiramente com eles – e somente a segunda coisa era considerada mais inaceitável do que a primeira. Se comer é repartir horizontalidade, como suportar um homem de Deus que ousava partilhar a sua mesa – e portanto a sua identidade – com um bando de pecadores sem qualquer mérito?
A resposta o rabi forneceu muitas vezes e de muitas maneiras, mas resume-se sempre ao mesmo ponto: a ninguém Deus recusa um lugar à sua mesa, pelo que a ninguém deveríamos recusar lugar à nossa. Ser santo como Deus é santo não é adotar a suposta distância que Deus estabelece entre si mesmo e o mundo, mas adotar a ausência de critério que Deus emprega em sua relação com todos. Arrepender-se é escancarar as portas da vida e instituir o Grande Banquete Ininterrupto, em que todos os homens servem e onde todos os homens são bem-vindos.
Conhecedor do potencial redentor desse inæstimabile sacramentum, Jesus tratou de trazê-lo para o centro da sua mensagem, tornando o fulcro mais essencial da sua memória: façam isso todas as vezes que comerem e beberem; façam isso em memória de mim. A comunidade do reino não ignora que a mesa é local sacrossanto e seletivo; apenas confessa que, justamente por essas razões, só é concebível se for universal.
O grupo de romeiros de Pentecostes passa portanto a encarnar, inaugurando-a, a insubordinação com a qual o movimento cristão seria associado ao longo dos seus primeiros séculos de história: a da multidão que reúne-se em suas casas para comer – sem aplicar as mais básicas distinções entre ricos e pobres, nobres e destituídos, puros e maculados, homens e mulheres, amigos e desconhecidos2.
Essa mesa universal resgata, simultaneamente, os aspectos de transgressão e tabu com os quais o ato de comer está associado em muitas culturas, particularmente a judaica – e ao mesmo tempo abole e transcende esses aspectos.
Nenhum judeu ignorava que comer era ato tão sério e prenhe de consequências que ocasionara a expulsão de Adão e Eva do paraíso; ninguém desconhecia que comer era ato tão sacrossanto e cercado de responsabilidades que deixara na Torá a marca de inúmeras leis e interdições. Na cultura judaica a santidade, a transgressão e a identidade eram definidas em grande parte pelo que o judeu devia abster-se de comer; essa obediência com respeito à continência alimentar era para ser entendida como postura corretiva e testemunhal, sustentada em puro contraste à deficiência demonstrada por Adão e Eva nessa área – bem como a suas terríveis consequências.
Certo da ressonância dessa tradição, Jesus tomou providências para garantir que a mesa universal que legava aos seus seguidores se mantivesse, também nesse campo, celebração de uma atordoante subversão. Porque, ao fundamentá-la ao redor do consumo simbólico do corpo e do sangue de um ser humano, o fundador do Banquete Ininterrupto não poderia ter escolhido símbolos mais incômodos e provocadores.
No judaísmo o canibalismo era tamanho tabu que a Torá omite-se até mesmo de nomeá-lo como interdição, e Jesus não se esquiva em ordenar peguem e comam, este é o meu corpo; o consumo de sangue era ostensivamente proibido, do que dão testemunho as recursivas medidas instituídas para livrar de qualquer traço de sangue a carne destinada a consumo humano, e Jesus declara peguem, bebam, este é o meu sangue. E insiste, simplesmente insiste, que essa transgressão ritual deve ser repetida “todas as vezes que vocês comerem e beberem”.
Todas as vezes que comiam e bebiam, portanto, os integrantes da comunidade do reino “encenavam a subversão” que seu precursor havia encarnado em todos os aspectos. Alimentavam-se continuamente, por assim dizer, de tudo aquilo que representavam a pessoa, a postura e o destino de Jesus.
Beber o corpo e o sangue do Filho do Homem nessa transgressão litúrgica unia-os ao homem de Nazaré, mas também reportava-os simbolicamente a Adão e Eva e libertava-os deles. O consumo do fruto proibido na transgressão do Éden levara os homens a ganhar o mundo, mas haviam na transação perdido a Deus e uns aos outros; o consumo do corpo e do sangue na transgressão cristã levava os homens a reconquistarem a si mesmos e uns aos outros, e nessa comunhão restauravam o mundo e reconquistavam a presença divina. Passavam a habitar, e em suas próprias casas, o fulcro temporal e geográfico, parcial e ininterrupto, que Jesus chamara de reino de Deus.
O meio é a mensagem, e o meio apontado por Jesus para indicar sua mensagem foi o sonho de um mundo em que todos os homens comeriam juntos, celebrando continuamente uma simbólica transgressão e encontrando nisso uma comunal redenção. A mesa universal é sua liturgia.
E quando a horizontalidade for completa, quando ninguém for excluído, quando todos servirem a todos e todos estiverem servidos, então horizontal e vertical se fundirão sem qualquer distinção, e Deus será visto à mesa entre os homens. O mundo estará restaurado, e será o reino de Deus.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Uma beleza que revolta
Um belo dia abracei a religião cristã.
Para falar a verdade, eu não era bom naquilo. Religião não é pra mim, e por algum tempo fiquei me sentindo um completo fracasso. Alguns religiosos me condenaram (e ainda condenam) ao fogo eterno, mas com o tempo passei a ver meu fracasso religioso como uma tremenda benção.
Porque, quando perdi minha religião, encontrei uma linda revolução.
Isso talvez ofenda ou surpreenda você, mas Jesus não é o fundador da religião cristã. É verdade, séculos depois dele levantou-se uma religião chamada “cristã” – mas, como você vai descobrir neste livro, em muitos sentidos essa religião representava o oposto de tudo que Jesus representava. Na verdade, como você vai também descobrir neste livro, o próprio conceito de uma “religião cristã” tem muito de mito quando entendido à luz do que Jesus representava.
Porque a mensagem essencial de Jesus não tem nada a ver com ser religioso. Basta ler os evangelhos: ele festava com os maiores pecadores e ultrajava os religiosos, e por isso foi crucificado.
O que Jesus representava era o início de uma revolução, revolução à qual ele deu o nome de “reino de Deus”.
O centro dessa revolução não é fazer com que as pessoas acreditem em determinadas crenças religiosas e adotem determinados comportamentos religiosos, embora essas coisas possam ser importantes, genuínas e úteis. Essa revolução também não está centrada na tentativa de consertar o mundo pela defesa das causas políticas “certas” e pela promoção das políticas nacionais “certas”, embora essas coisas possam ser nobres, bem-intencionadas e eficazes.
Não: o reino de Deus estabelecido por Jesus está centrado em uma coisa e apenas nessa coisa: manifestar a beleza do caráter de Deus e, em conformidade com isso, revoltar-se contra tudo que é inconsistente com essa beleza. O reino está centrado na manifestação de uma beleza que revolta.
O reino é, em resumo, uma linda revolução.
Tudo em Jesus manifestava esse reino belo e “revoltante”; podemos vê-lo de forma mais profunda quando que Jesus deixou-se crucificar. No Calvário Jesus exibe a beleza da decisão de Deus de sofrer pelos seus inimigos – em vez de usar seu poder onipotente para derrotá-los de forma violenta. No Calvário vemos também a revolta divina contra nossa escravidão à violência e tudo que nos mantém alienados de Deus e uns dos outros. O próprio diabo é confrontado e vencido pela cruz de Jesus Cristo.
A morte de Jesus resume o tema de sua vida inteira. Cada aspecto de sua vida, seu ensino e ministério colocava em exibição a beleza do reino de Deus e revoltava-se contra algum aspecto da cultura que contradizia esse reino.
O chamado essencial de todos que entregam sua vida a Cristo é unir-se a essa linda revolução e, portanto, viver e amar dessa forma. “Quem diz viver nele”, afirma João, “deve viver como ele viveu” (1 João 2:6). Devemos manifestar a beleza de Deus amando sacrificialmente nossos inimigos, servindo os pobres, alimentando os famintos, libertando os oprimidos, acolhendo os excluídos, abraçando os maiores pecadores e curando os doentes, como Jesus fez. E não existe como fazer isso sem ao mesmo tempo nos revoltarmos contra tudo em nossa vida que nos mantém autocentrados, gananciosos e apáticos diante das necessidades dos outros. Também não há como fazer isso sem revoltar-se contra tudo na sociedade – e, como veremos, no âmbito espiritual – que mantém as pessoas oprimidas fisicamente, socialmente e espiritualmente.
Você então vê que o reino não tem nada a ver com religião – quer seja “cristã” ou não. Tem a ver com seguir o exemplo de Jesus, manifestando a beleza do reinado de Deus ao mesmo tempo em que nos revoltamos contra tudo que é feio.
É uma linda revolução a que somos todos convidados a aderir. Mas para fazer isso será preciso abrir mão da religião.
Gregory A. Boyd
em The Myth of Christian Religion
(O mito da religião cristã)
Publicado por Paulo Brabo
terça-feira, 3 de agosto de 2010
O sentido de ser cristão hoje
Não se há de entender o Cristianismo como um fóssil intocável. Mas como um arquétipo vivo que em cada geração mostra virtualidades novas e, no termo, ilimitadas. Nesse sentido cabe perguntar: o que o Cristianismo, em comunhão com outros caminhos espirituais, poderá trazer de bom para a preservação da integridade da criação e para um futuro esperançador da humanidade? Eis algumas perspectivas:
Antes de mais nada o Cristianismo oferece aquilo que ninguém e nenhuma sociedade pode prescindir: uma utopia, fundadora de um sentido pleno. A utopia cristã promete: o fim do universo e do ser humano é bom. Não vamos a encontro de uma catástrofe mas de uma transfiguração. Portanto, não a morte e a cruz têm a última palavra mas a vida e a ressurreição. Jesus chamou a essa utopia de Reino de Deus que significa uma revolução absoluta, fazendo com que todas as coisas realizem suas potencialidades intrínsecas e assim explodam e implodam num absoluto sentido, chamado Deus.
Mas não existe apenas a utopia, o Reino. Vigora também a anti-utopia, o anti-Reino. Na verdade, o Reino se constrói no confronto com o anti-Reino que são forças que desagregam e desviam o ser humano de sua utopia essencial. Ele ganha corpo em movimentos históricos e em pessoas que articulam discriminações, ódios e mecanismos de morte. É nesse nivel que se trava incansável luta entre o sim-bólico e o dia-bólico. Face a esse embate o Cristianismo testemunha: o dia-bólico, por mais forte que se mostre, não consegue prevalecer absolutamente. O sim-bólico não apenas limita a virulência do dia-bolico senão que se revela capaz de crescer no confronto com ele e assim vencê-lo. A cruz cristã revela a coexistência do dia-bólico (expressão de ódio) com o sim-bólico (prova de amor).
Esta estrutura dia-bólica/sim-bólica (caos/cosmos) pervade toda a realidade e o próprio Cristianismo. Nele há negações e contradições. A tradição da teologia sempre falou que a Igreja é “casta meretriz”, casta porque vive a dimensão do Espírito e meretriz porque sucumbe, tantas vezes, à dimensão da Carne.
Apesar desta contradição, intrínseca à realidade, podemos, pois, olhar para o futuro com jovialidade e não com pavor. A luz tem mais direito que as trevas. O caminho está aberto para cima e para frente. E ele é promissor.
Em que se funda o triunfo desta utopia? Funda-se no fato de que Deus mesmo entrou em nosso processo evolucionário através de sua encarnação no judeu Jesus de Nazaré. Deus fez-se humano pobre e excluído. A partir da encarnação, tudo é divino pois tudo foi assumido por Deus. O que Deus assumiu tambem eternizou. O universo e a humanidade pertencem definitivamente à realidade de Deus. Somos tambérm Deus por participação. Logo, estamos inapelavelmente salvos de todas as nossas errâncias.
Onde é o lugar de verificação desta utopia? Na ressurreição do Crucificado. Mas ressurreição não é sinônimo de reanimação de um cadáver, uma volta à vida mortal anterior, como ocorreu com Lázaro que afinal acabou morrendo novamente. Ressurreição é uma revolução na evolução: transporta o ser humano ao termo da história, realizando-o absolutamente. Por isso ela comparece como a concretização da utopia do Reino nesse homem concreto, Jesus de Nazaré. Ele representa uma antecipação e uma miniatura do que será ridente realidade no futuro de todos e também do universo do qual somos parte e parcela. O homem latente no processo evolucionário agora virou homem patente no seu termo benaventurado.
Todos ressuscitaremos. Consequentemente, não vivemos para morrer. Mas morremos para ressuscitar. Para viver mais, melhor e para sempre. Pela ressurreição se responde ao mais entranhável desejo humano: superar a morte e viver em plenitude para sempre. Só esse dado revela as boas razões da relevância do Cristianismo para fenômeno humano universal.
Esse acontecimento da ressurreição deslanchou, naturalmente, a pergunta: quem é esse no qual se realizou a utopia? É aqui que começou o processo de decifração de Jesus por parte de seus seguidores. Começaram por chamá-lo de Mestre, de Senhor, de Cristo e de Filho de Deus. Como nenhuma destas palavras colhia todo o seu mistério, arriscaram chamá-lo de Deus, Deus encarnado em nossa miséria. E aí se calaram, reverentes, pois se davam conta de que usavam um mistério para interpretar outro mistério. Ousadia da fé. Essa é a compreensão dos discípulos e de todas as Igrejas cristãs.
E Jesus, como se entendia a si mesmo? As indicações mais seguras revelam que possuia a consciência de ser Filho de Deus. Consequentemente invocava a Deus como Pai, especificamente, como Abba, expressão infantil para dizer: “meu querido paizinho”. Os qualificativos que confere a esse Pai, são todos maternos, pois possui entranhas, cuida de cada cabelo de nossa cabeça, mostra infinita misericórdia e ama a todos indistintamente, até os ingratos e maus. O Deus-Pai é materno ou o Deus-Mãe é paterno.
Ao descobrir-se Filho de Deus, Jesus nos fez descobrir que somos também filhos e filhas de Deus. Essa é a suprema dignidade, revelada a todos os humanos, por mais humílimos que sejam, mesmo não professantes da fé cristã.
Se filhos e filhas, então somos todos irmãos e irmãs uns dos outros. Esta irmandade universal é a base para o amor, para a fraternura, para o cuidado, para as relações de cooperação, de inclusão, em fim, para o sonho democrático como valor universal.
Todas estas excelências não se realizaram num Cesar no apogeu de seu poder, nem num Sumo-sacerdote no exercício de sua sacralidade. Mas num simples operário de suburbio, pobre e desconhecido, no carpinteiro ou fazedor de telhados, Jesus. Esse foi o caminho de Deus ao encarnar-se. Pobre, Jesus optou pelos pobres chamando-os de benaventurados. Não porque sejam operosos ou bons. Mas porque, independente de sua condição moral, os vê como os primeiros beneficiários da ação libertadora de Deus. Deus sendo um Deus vivo e fonte de vida, opta, desde suas entranhas, pelos que menos vida têm. Ao realizar o Reino começa por eles e depois se abre aos demais. Por isso Jesus podia dizer: “felizes são vocês pois o Reino lhes pertence”. Só a partir deles o evangelho emerge como boa-notícia de libertação.
Jesus não só optou pelos pobres, identificou-se com eles. Por isso, como Juiz supremo, se esconde atrás deles. “O que tiverdes feito a um desses meus irmãos menores, foi a mim que o fizestes e o que o deixastes de fazer a eles, foi a mim que deixastes de fazer”. A questão dos pobres é tão central que por ela passam os criterios da verdadeira Igreja. Uma Igreja que não confere centralidade aos pobres e não assume a causa da justiça dos pobres não está na herança de Jesus.
Se alguém se sente Filho de Deus e invoca a Deus como seu Pai compromete a compreensão mesma de Deus. Diz-se ainda que é somente na força do Sopro, do Espírito, que alguém pode dizer-se Filho de Deus. Então Deus não é mais solidão mas comunhão de Pai, Filho e Espíritpo. É o que Cristianismo quer significar ao dizer que Deus é Trindade. Não quer multiplicar Deus, pois esse é sempre um e único. O único não se multiplica. Não estamos no campo da matemática. O três expressa o arquétipo da comunhão perfeita. Se Deus fosse um só haveria a solidão. Se fosse dois, reinaria a separação, pois um é distinto do outro. Sendo três vigora a comunhão de todos com todos. O três significa menos o número do que a afirmação de que sob o nome Deus se verificam diferenças que não se excluem mas se incluem, que não se opõem, mas se põem em comunhão. A distinção é para a união.
Se a última realidade é relação e comunhão, entendemos naturalmente o que nos ensinam a física quântica e a cosmologia contemporânea: que tudo é relação e nada existe fora da relação; tudo comunga com tudo em todos os pontos e em todas as circunstâncias, pois tudo é sacramento de Deus-comunhão-de-Pessoas.
De nada valem essas doutrinas se não se transformarem em experiências e em novo estado de consciência. O Cristianismo é menos algo para se compreender intelectualmente do que para se viver afetivamente. Junto com outras tradições espirituais da humanidade ajuda a alimentar a chama sagrada que carregamos. Não somos errantes num vale de lágrimas mas sob a luz e o calor desta chama nos sentimos no monte das benaventuranças, como filhos e filhas da alegria.
Leonardo Boff
Tudo ter, nada possuir
Paradoxo é uma figura de linguagem que apresenta uma aparente contradição, como por exemplo a famosa expressão “é dando que se recebe” ou a advertência de Jesus afirmando que “ganha a vida quem a perde por amor a ele”.
Reino de Deus é um conceito do cristianismo, semelhante a reino dos céus, e até mesmo céu. O reino de Deus pode ser o ambiente onde a vontade de Deus é feita na terra como no céu, ou também uma qualidade de relacionamento com Deus, onde aquele que participa do reino de Deus não vive mais para si mesmo mas para o próprio Deus, e, finalmente, o status de uma realidade, isto é, o reino de Deus está onde as coisas são exatamente do jeito como Deus quer que sejam.
Experimentar ou participar do reino de Deus, portanto, é viver para Deus e sob o cuidado de Deus, promovendo a vontade de Deus em todos os ambientes de nossa influência, de modo que a realidade vá se tornando cada vez mais como Deus quer que ela seja, até que toda a terra se encha do conhecimento da glória de Deus como as águas cobrem o mar.
Os paradoxos do reino de Deus são que quando passamos a viver para Deus, abrimos mão de tudo quanto temos e somos, e, em vez de ficarmos com nada, ficamos com tudo, pois quem está sob o cuidado de Deus, de nada tem falta, de modo que temos tudo, mas vivemos como se nada tivéssemos, pois quem vive para Deus não está apegado a nada, senão ao próprio Deus.
O discipulado de Jesus Cristo implica ter tudo em Deus, mas viver como se nada tivesse, desapegado de tudo, olhando para tudo que é seu como se seu não fosse, colocando tudo o que tem a serviço dos interesses de Deus, para que em todas as coisas a vontade de Deus prevaleça e o mundo se encaixe nos propósitos de Deus. Assim viviam os cristãos do primeiro século: “da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham”; “os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum... vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade”; “quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco”.
O discipulado de Jesus Cristo implica nada ter, mas viver como se tudo tivesse, andando em segurança, pois aquele que tem a Deus, de que mais necessita? Assim ensinam as Sagradas Escrituras: “O Senhor é o meu pastor; de nada terei falta”; “Deleite-se no Senhor, e ele atenderá aos desejos do seu coração. Entregue o seu caminho ao Senhor; confie nele, e ele agirá: ele deixará claro como a alvorada que você é justo, e como o sol do meio-dia que você é inocente. Descanse no Senhor e aguarde por ele com paciência; não se aborreça com o sucesso dos outros”; “Desde os tempos antigos ninguém ouviu, nenhum ouvido percebeu, e olho nenhum viu outro Deus, além de ti, que trabalha para aqueles que nele esperam”; “Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Observem as aves do céu, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas?”; “... Deus suprirá todas as necessidades de vocês, de acordo com as suas gloriosas riquezas em Cristo Jesus”.
Ed René Kivitz
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