segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O que pensamos, do que temos medo, o que amamos, nossas crenças não podem evidenciar-se. Não totalmente, menos ainda de uma vez por todas. É preciso negociar o que de nós pode participar da vida pública e o que deve permanecer guardado como reserva existencial.
É possível existir verdade demais em uma alma para que ela se exponha e com isso comprometa sua sobrevivência. É preciso economizar as exibições.
O contrário é também verdadeiro. Neste jogo ambivalente, muito pouca verdade em uma alma, ou uma verdade que faz seu portador pequeno demais, reivindica grandes mentiras em um desempenho.
Verdade demais ou de menos, mas todos têm algo a escamotear. A isso chamamos de interioridade.
Aquela mulher tem envolvimentos questionáveis. Todos já sabem e ninguém toca no assunto. Não convém ir às últimas conseqüências. Talvez porque lhes sejam muito bons seus favores sexuais, ou muito útil sua candidatura iminente a próxima maldita. Ela segue sua rotina de culpa e apreensão. Qualquer dia desses o seu mundo desmorona.
Jesus faz escolhas sintomáticas. Sensível demais com quem ninguém se importa. Gente já assentada nos espaços organizados para que a vida de todos prossiga sem perturbação. Mulheres, doentes, pecadores, malditos, por eles demonstra afetos perigosos. Sua linguagem o classifica entre revolucionários. Fala de um Reino para pobres e incita à busca de justiça. Mas o que é mais grave, parece ficar à vontade demais com os proscritos, demonstra com eles sentir-se em casa. Veja como olha para essa gente. Veja como bebe, come e ri. Entre os demais mestres há uma intuição desesperada de que ele é uma ameaça, de que suas intenções são profanas. De que esconde o que a todos escandalizaria.
Fariseus e mestres da Lei, estes despendem enorme energia no jogo. Dos três, Jesus, a mulher e os guardiões da religião, estes são os mais miseráveis. Todos padecem, mas ninguém precisa tanto esconder quanto eles. Ninguém lustra com tanto rigor e piedade o que aos outros aparece. Jesus anda revoltado com o seu procedimento. Já os chamou de “sepulcros caiados”, hipócritas.
E o trágico acontece. A mulher foi flagrada. O que pode ser mais proibido no jogo da moral que se deixar flagrar? Surpreendida em condições indisfarçáveis, seu sexo condenável de tão ardente, ou seria, ardente de tão condenável, acende escrúpulos e ardis. Como são perspicazes os escandalizados. O que mais desnudaria o perigoso mestre nazareno que a nudez de uma pecadora? Pois castrar o erótico é o que mais se aproxima de reprimir a crítica.
Jesus está cercado de gente quando o ruído raivoso interrompe seus ensinamentos. Homens de passos decididos, olhares fulminantes e um trapo humano nas mãos. Na boca, o rigor da lei; já no chão, a vergonha que despiu de humanidade a mulher; em seus corações, armadilhas.
O texto frio da lei é fluente no simulacro da moral. A letra grafada e morta não vasculha corações nem pergunta por afetos, não ilumina interioridades nem chora misérias, mata. Pronuncia-se a Lei com reverência, apedreja-se pessoas, portanto, com fervor. A lei diz para apedrejar e você, o que diz? Quem está ali conclui rápido a derrocada incontornável do mestre. Não dá para driblar a tensão. E todos já sabem que escolha ele fará.
Sua resposta é uma sátira. Um deboche. Uma charge. Porque todo assunto muito sério é uma piada. Jesus curva-se em desdém à gravidade da proposição e escreve com o dedo no chão. Galhofa. Sua escrita evade o ambiente e ri da austeridade dos zeladores da moral.
Neste instante há uma superposição de cenas. Fariseus e mestres da dura escrita da Lei com cenhos franzidos, pedras nas mãos e um jogo de poder funesto na alma, encena o primeiro plano. Ausentando-se para o segundo plano, Jesus, de cócoras, lúdico, escrevendo com o dedo no chão. Sua escrita brinca e dança na areia. Insuperável escolha. Quem olha não os tem no mesmo foco. Se o rigor oportuno dos fariseus é o que amamos, a imagem satírica de Jesus embaça, quase desaparece. Se a cena despretensiosa e estética do mestre, que rabisca desenvolto no chão, é o que nos magnetiza, então os aflitos e tensos fariseus esvanecem ao fundo. O Cristo que risca trivialidades no chão faz poesia e chama de triste ficção o flagrante que mente a vida e anuncia a morte.
Mas doutrinadores entendem de emboscadas morais e tocaias linguísticas, não de escritas leves e despretensiosas. A mesma poesia que salva Jesus da sanha por doutrina e dominação é desespero para os demais. Ah, se ele pudesse ficar ao chão, rabiscando, descolado daquele mundo, desligado daquela lógica! Eles insistem na inquisição e na morte da mulher. Cristo se ergue, dedos sujos de tanto que brincou no chão, às inquirições questiona, pergunta às interrogações e flagra os flagrantes. Quem não tiver pecado atire a primeira pedra. Quem não se flagrar em segredos leve a sério a sua religião. Descobrir-se protagonista da grande piada é a pior vergonha. Um a um, todos se retiram.
Enquanto isso, Jesus mantém-se curvado e entregue aos rabiscos na areia. É assim que se escreve, com a fluidez de quem o faz sem a pretensão poderosa de se perpetuar. O resto é doutrina, é lei, é flagrante de morte. Ele dá as costas à escrita pretensiosa de ocupar o mundo, como se o mundo fosse o que aparece. Escreve no fugidio pó o traço da misericórdia. A escrita na areia que o vento leva é tão livre que torna aquele ambiente insustentável para os rígidos escribas. Apenas quem escreve conteúdos para serem esquecidos está apto a desenhar o belo e a liberdade. Apenas os riscos poéticos, espalhados no chão e que logo serão lançados pelo vento no imponderável horizonte, somente eles libertam os pecadores de seus cruéis flagrantes.
Não há mais ninguém ali, além dos dois. Estão livres, por enquanto. A mulher, do apedrejamento. Jesus, de mais uma arapuca. Mas os fariseus e mestres da lei, estes foram condenados a manterem a todo custo o falso brilho de sua aparência.
A mulher volta à vida. Jesus fica um pouco mais por ali, escrevendo na areia e saboreando, com um breve riso nos lábios, a sobrevida.
Até que em um dia desses, sua poesia se torne um crime e sua liberdade, uma cruz.

Elienai Cabral Junior

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Pela alma do povo: omissões coletivas e bravuras individuais

 

 



Nós e o cristianismo só temos uma coisa em comum:
exigimos a pessoa toda!

O juiz nazista Roland Freisler a Helmut Moltke,
durante o julgamento de Moltke pelo seu envolvimento
no
atentado de 20 de julho


Eu estava a meio caminho da interminável biografia de Dietrich Bonhoeffer (que ainda não terminei) quando comecei a ler For the soul of the people: Protestant protest against Hitler [Pela alma do povo: Protesto protestante contra Hitler], da historiadora Victoria Barnett. Pus de lado esta semana a última página do livro, e posso dizer que encontrei o que não procurava – talvez justamente porque (e eis a necessária reviravolta) não encontrei o que procurava.

O título do livro é ao mesmo tempo enganador e significativo porque, como a autora vai deixando agonizantemente claro, não houve protesto protestante contra Hitler. Não na Alemanha nazista. Não quando era necessário. Não quando um protesto poderia fazer diferença. Não com qualquer ênfase ou visibilidade, não por parte de um grupo significativo e certamente não por parte da instituição como um todo.

O que houve, e disso a história fornece redentora e incômoda evidência, foi protesto individual de protestantes contra Hitler. A instituição essencialmente nada fez, mas naquele mais vigiado, preconceituoso, intolerante e opressor dos regimes levantaram-se uns poucos heróis solitários que, precisamente como Bonhoeffer, colocaram-se publicamente em pé diante da máquina simplesmente porque não concordavam com a direção em que ela estava indo, e por causa de quem estava sendo esmagado no caminho. A maioria desses, precisamente como Bonhoeffer, não escapou com vida para testemunhar a primavera de 1945, quando o planeta despedaçado acordou perplexo para o fim da inocência mundial.

É uma narrativa que confirma da forma mais excruciante o que venho intuindo há muito tempo (“repita comigo: as instituições não existem, só existem pessoas“) sobre a insuficiência das instituições e a facilidade com que podem tornar-se carimbos coletivos que o sistema usa para endossar a injustiça. Na história como apresentada por Barnett é terrível constatar o tempo que perde, esperando alguma reação ou posicionamento da igreja formal, o punhado de pessoas realmente disposta a se levantar contra o regime – ou, talvez ainda mais importante, disposta a ajudar quem está sendo prejudicada por ele. Mesmo os militantes mais radicais da resistência protestante na Alemanha nazista demoraram anos até passarem a questionar a omissão do sistema eclesiástico em público e em privado; todos, mesmo os terrivelmente lúcidos como Bonhoeffer, simplesmente queriam que a instituição funcionasse. Muitos deles ficaram querendo até o último momento.

A verdade que esta parábola deixa evidente é que a instituição não existe para defender uma causa ou sua coerência ideológica interna, mas para garantir sua própria perpetuação – pelo que seu modo de operação mais fundamental é a cautela. Quando o governo nazista decretou que os judeus estavam a partir de determinado momento desclassificados para determinadas posições públicas e privadas, não ocorreu à igreja questionar esse julgamento, mesmo quando os que queriam comprovar a sua ascendência ariana recorreram em massa aos arquivos eclesiásticos, que detinham os registros de nascimento – e cujos responsáveis tiveram de trabalhar em dobro (e em alguns casos contratar assistentes e secretários) a fim de suprir a nova demanda de verificação racial gerada pelo estado.

Quando os judeus convertidos ao cristianismo se tornaram um embaraço inequívoco também dentro das igrejas, muitos sugeriram singelamente que uma solução amorosa seria que esses cristãos de origem “não-ariana” abrissem uma igreja só para eles, onde não representariam ameaça para outros além de si mesmos. Isso enquanto toda uma ala da igreja evangélica alemã, a dos chamados “Cristãos Germânicos”, propunha a sumária eliminação do Antigo Testamento de todas as Bíblias, de modo a sinalizar sem margem de dúvida o rompimento do cristianismo com a herança judaica.

Diante do ensurdecedor silêncio da igreja perante esses procedimentos, uma facção dela decidiu que era necessário postar-se publicamente contra a onda de insanidade. Esses, mais ou menos liderados por Bonhoeffer, deram a si mesmos o nome de Igreja Confessante, porque criam que confessar o nome/pessoa de Jesus implicava em manifestar-se publicamente contra toda forma de injustiça, mesmo diante de riscos institucionais e pessoais.

O livro de Barnett explica como essas três facções da igreja alemã (a minoria dos Cristãos Germânicos, a maioria conservadora/cautelosa e a minoria confessante) combateram umas com as outras durante o regime nazista de modo a, no fim das contas, se sujeitarem mutuamente ao mais completo silêncio diante das injustiças de Hitler.

Parte essencial da história, na verdade, está em que logo ficou claro que havia diferenças irreconciliáveis de convicção e de estratégia entre moderados e radicais mesmo dentro da Igreja Confessante. Essa polarização apenas se acentuou com o cerrar do cerco nazista, até que aqueles dispostos ao martírio entenderam que mesmo o movimento confessante era insuficiente para se proferir no meio do caos a Palavra, e partiram para a carreira solo no acolhimento de perseguidos ou no terrorismo secular. Entenderam que se haveria uma igreja contra a qual as portas do inferno não resistiriam, essa se manifestaria através de indivíduos e não da instituição. Porém essa sua distração com a fé no sistema custou muito para eles mesmos e para outros: quando esses poucos caras – a dissidência da dissidência – sacaram que não podiam e não deviam contar com as soluções institucionais, era essencialmente tarde demais.

O cerne do problema parece ter residido no fato de que, numa tradição que se estendia praticamente até Lutero, igreja e líderes eclesiásticos alemães haviam durante séculos sido incentivados a declarar mútua lealdade para com “o trono e o altar”. Nessa visão de mundo governo e igreja eram considerados sistemas independentes, mas unia-os um acordo tácito pelo qual um se comprometia a não interferir nos negócios do outro, e pelo qual ambos se comprometiam a fornecer ao outro legitimidade. Em outras palavras, a igreja não se sentia particularmente devedora a qualquer manifestação do Estado, mas sentia-se menos ainda inclinada a a interferir em negócios que diziam respeito a “outro domínio” que não o espiritual. Seu papel cristão era, muito declaradamente, pregar o evangelho e distribuir os sacramentos. Insurreição, resistência, desobediência civil – numa palavra, protesto – não desempenhavam qualquer papel no vocabulário prático da tradição protestante.

Essa sacrílega cumplicidade entre igreja e estado tem, evidentemente, raízes ainda mais antigas do que a Reforma, que apenas inseriu na equação o fator competição [à Igreja Católica]. Em sua manifestação original o movimento cristão era apolítico, anti-imperialista e subversivo ao ponto da anarquia funcional, mas o sucesso espetacular da sistematização do cristianismo terminou por apagar por completo os efeitos dessa herança subversiva – até que, em Constantino, igreja e império se transformaram numa única e abominável coisa. Para o historiador cristão Eusébio, escrevendo no ano 336, o imperador Constantino (o primeiro a conceder favor estatal à fé cristã) representava o modelo do governante espiritual, um “amigo de Deus” que “arranja seu governo terreno de acordo com o padrão do original divino”. Para Eusébio, Constantino deveria ser visto pelos crentes como “nosso imperador divinamente favorecido”, que havia recebido “como que uma transcrição da soberania divina” a fim de conduzir “em imitação do próprio Deus a administração dos negócios do mundo”1 – nada muito diferente do que cristãos alemães opinariam séculos mais tarde a respeito de Hitler.

Nessa única transação com o Poder o movimento cristão passava de frágil a influente, de subversivo a inofensivo, de marginal a detentor do status quo, de incendiário a bombeiro, de incômoda ameaça aos poderes e potestades deste mundo a seu mais valioso selo de confirmação. As tremendas desventuras, grandes vergonhas e pequenas ousadias encenadas pela igreja evangélica alemã durante o regime nazista apenas demonstram o quanto há de contemporâneo e de diabólico nessa aliança, mesmo em regimes que professam oficialmente divisão entre igreja e estado.

É uma história que demonstra muito claramente que o problema não reside na separação entre igreja e estado, porque enquanto permanece como instituição a igreja é obviamente inseparável dos governos deste mundo. Uma instituição é basicamente uma entidade coletiva que tem algo a perder (mesmo que seja apenas sua própria autoridade), e o movimento cristão é por definição bíblica o movimento dos desbravadores do reino – isto é, o domínio em permanente insurreição dos que confessam não ter nada a perder, e sustentam ao mesmo tempo que o único modo de confessar isso é demonstrá-lo.

É algo ao mesmo tempo belo e terrível que a história do protesto protestante contra Hitler só tenha para contar omissões coletivas e bravuras individuais. A segunda metade do século XX e sua extensão no terceiro milênio são resultado sem escalas da experiência coletiva da Segunda Guerra, e sobreviver a ela ensinou-nos não só a questionar incessantemente qualquer ideologia (porque tememos outro Hitler), mas a duvidar da eficácia e da legitimidade de soluções intermediadas/institucionais.

Essa, no entanto, é uma lição de humildade que o terreno beligerante da tradição cristã irá até o último momento recusar-se a absorver. Prova disso é o que aconteceu logo depois – porque Barnett, para minha surpresa, não termina sua história com o final da guerra. E se o drama da igreja alemã sob Hitler havia confirmado minhas piores suspeitas, nenhuma expectativa me havia preparado para o que veio em seguida.


Paulo Brabo

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Eis-me aqui! Mais nunca vai

Tenho convivido com pessoas que fazem movimentos, se comprometem, “se solidarizam com causas”, colocam a fitinha do bombeiro nos carros, que aliais andou muito em moda, divulgam na internet, no Orkut, no facebook, se colocam contra a Pl 122, apóiam, apóiam, apóiam, mas nunca se envolvem.
A impressão é: Por mais que o discurso seja bonito, nunca veremos essas pessoas se envolvendo por inteiro em qualquer coisa, a não ser que seja diretamente e exclusivamente uma causa sua.
O individualismo não permite que a pessoa se envolva com projetos de terceiros, mas somente naquilo que é seu, que represente seu interesse e principalmente se não demandar muito esforço, a não ser que esteja doendo na própria carne.
Ficam a margem das coisas, nunca se entregam, nunca estão comprometidos, não deixam um pingo de suor em nada daquilo que dizem que é bom ou em causas que eles entendem ser necessárias ou “ de Deus”, porque nem com Deus que eles dizem ser o Deus deles se envolvem a vera e de verdade. Até porque, o próprio Deus esbarra em pessoas que só vivem para si.
Sempre se encontram para buscar promoção pessoal, desenvolver a sua vaidade, não honram com a palavra, manipulam as pessoas com a mentira, que é muito comum em pessoas com esse perfil. Na pior caricatura, enganam os próprios amigos. É quase dizer: amigos-amigos, negócios a parte, e sendo tão a parte que em alguns casos subtraem até benefícios proveniente das outras pessoas (amigos).
Romanos 2.17,24: “Mas tu que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em Deus; e conheces a sua vontade e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído na lei (Faculdade ou Seminário maior); e confias que és guias de cegos (Professores, preletores, pastores e etc.), luz dos que estão em trevas (as vezes é melhor não a vida no velador), instruidor dos néscios (estúpido, ignorante, que ou o que é desprovido de sentido, de coerência, absurdo) Quem são os néscios? Mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade na lei; tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abomina os ídolos, roubas os templos? (pode ser igreja ou não?) Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? (aos que se utilizam da Bíblia).
Como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa de vós.
É melhor não conviver com isso. O problema maior pode acontecer com aquele que come contigo.
O “amigo”? Pode ser aquele que vai levantar o calcanhar contra você. Ele não é fiel a ninguém senão a ele mesmo

Pense nisso
Wagner

quinta-feira, 21 de julho de 2011

A DOENÇA DO VÉU!


É somente na Graça que a Escritura não é uma pedra seca e morta. Ora, para que entendamos isto melhor, é necessário que olhemos com carinho para o texto de Paulo em II Coríntios 3:1-18.

A relação de Paulo com os Coríntios foi forte e contundentemente passional. Ele chegara à cidade e lá encontrara Priscila e Áquila — um casal de Judeus que havia deixado Roma porque Cláudio, o Imperador, ordenara que de lá saíssem todos os judeus.

E como eram do mesmo ofício, Paulo e Áquila, começaram a trabalhar e morar juntos, fazendo tendas. Aos sábados, todavia, Paulo pregava na sinagoga.

Havendo conturbação entre os judeus ante a mensagem da Graça em Cristo anunciada pelo apóstolo, Paulo não teve mais ambiente para permanecer usando a sinagoga como lugar de pregação. Então, iniciou seus ensinos da Palavra na casa de Tício, que era vizinha à sinagoga.

Em meio a não poucos conflitos, envolvendo ameaças de natureza tanto legal quanto à vida de Paulo, este temeu. O Senhor, todavia, numa daquelas noites, lhe falou, dizendo: “Não temas! Fica na cidade, pois eu tenho muito povo nela”. Paulo, portanto, permaneceu em Corinto quase dois anos.

A relação dele com a igreja que ali nasceu tornou-se forte, e, como já disse, de certa forma, passional!

Para concluir isto, basta que se Leia as duas epístola que Paulo lhes escreveu. Todavia, é na segunda carta aos Coríntios que esse sentir apaixonadamente dolorido melhor se expressa.

O interessante é que mesmo em meio à paixão humana do apostolo, é fácil perceber como seus sentimentos aparecem sem comprometer jamais a verdade da Palavra.

Paulo era um homem que sabia sentir a dor da rejeição sem deixar de expor, com isenção, a verdade da Palavra, não adulterando-a jamais a seu favor!

Ora, é nessa viagem entre o sentir humano e a revelação da Palavra, que a verdade se manifesta como resposta divina ao contexto em questão!

A revelação, raramente, não se faz acompanhar pelo sentir de seus mensageiros. Sábios são aqueles que a separam de seu próprio sentir ou os que sentem sem, todavia, sentimentalizarem a revelação à seu favor.

É só assim que uma carta de um ser machucado pode se tornar uma epístola de um ser inspirado!

Neste trabalho, no entanto, não desejo explorar essa dimensão da veicularão da revelação através dos ambientes conturbados da alma do mensageiro. Para mim, isto é tão óbvio que, pelo menos agora, não é do nosso interesse imediato.

A epístola toda tem sido objeto de inúmeros estudos eruditos. Os “arranjos” à que ela tem sido submetida, são inúmeros. Para nós, no entanto, todas as discussões de natureza literária são irrelevantes. O que vale é a mensagem e, esta, não importando as interpretações de natureza histórico-literária, é a mesma:

 
Um apóstolo apaixonadamente sofrido, sentindo-se traído e desconsiderado pela igreja que fundou, e que, agora, além de des-conhecer seu pai espiritual, ainda se entregava às seduções de “falsos apóstolos”, dos “obreiros fraudulentos”, que “adulteravam a Palavra de Deus”, e criavam um “outro evangelho”, pois eram, de fato, “mercadores do “evangelho”, ainda que tivessem o impressionante “poder” de se transformarem em “anjos de luz e ministros de justiça”.

A questão é: que “obreiros” são esses e que “evangelho” é esse que subverte aquilo à que Paulo chama de Evangelho da Graça de Deus?

É opinião praticamente unânime que os tais “adulteradores da Palavra” eram os cristãos judaizantes ou os judeus próximos à igreja, e que tentavam, insistentemente, trazer aos cristãos a culpa de não serem pessoas que observam a Lei de Moisés. A prova disto é a seqüência do texto, onde as ilustrações são todas as da Lei e de sua produção na mente humana.

Como eu disse inicialmente, corre-se o risco de se ficar tão impressionado com as “pulsões” emocionais do homem Paulo neste embate, que deixa-se de perceber a mensagem.

Ou seja: fica-se com o que está “escrito” e não se percebe, ao nível da Palavra, o que está, também, “dito”, como expressão dos conteúdos da revelação!

Propositadamente abandono aqui os aspectos de natureza histórico-factual e mergulho exclusivamente na mensagem que Paulo faz viajar em meio às suas dores e passionalidades apostólicas.

Ora, assim fazendo, o que se vê, é, basicamente, o seguinte:

O que o ministério de Paulo gerara neles, pela obra do Espírito, era algo que realizava o sonho dos profetas, que era ver a Palavra inscrita não nas exterioridades do comportamento assustado pela Lei, mas impressa na consciência, nos ambientes do coração.

Os resultados da interiorização da Palavra, inscrita pelo Espírito do Deus vivente na consciência humana, não era humanamente realizável, sendo, portanto, algo à que Paulo se refere excluindo-se como agente essencial, pois, ele sabia, aquela era uma obra para a qual não há meios humanos de faze-la acontecer. A participação de Paulo era—sem suficiência própria—, apenas pregar o Evangelho da Graça e crer que o resto do trabalho era obra do Espírito de Deus.

A certeza de Paulo de que dera um passo muito para além das basicalidades das pregações estereotipadas e exteriorizadas sobre as virtudes da Lei, vinha do fato que ele sabia que a Lei—conquanto boa e santa—, servia apenas para mostrar a nossa “insuficiência”, em relação a sermos salvos por ela. Paulo não se sentia suficiente nem mesmo para pregar a Graça e suas virtudes—como se procedessem dele—, quanto mais a Lei, como se por ela alguém pudesse ser salvo!

O argumento dele é o de sempre: “a letra mata”. A observância da Lei salvaria apenas aquele que pudesse cumpri-la toda. E como não existe, à parte de Jesus, ninguém que a tenha cumprido complemente—dos ambientes interiores às suas sutis exterioridades—,todos, portanto, por ela, se colocavam apenas sob os desígnios da culpa e da morte.

Tendo isto em mente, chega agora a hora de olharmos para a Palavra e não apenas para a “epístola de Paulo”. E qual é a “mensagem” que ela carrega para nós hoje?

Inicialmente, Paulo diz que a Lei e sua Gloria são coisas de outrora, diante da sobreexcelente Gloria do evangelho da Graça de Cristo. Todos os verbos por ele usados em relação à Lei a posicionam no passado da revelação da Graça.

O que segue é a incomparabilidade de ambas as revelações: A Lei era externa, a Palavra é interna. A Lei era o ministério da morte, a Palavra é o ministério da Vida. A Lei falava de condenação, a Palavra fala de justificação. A Lei se desvanecia, a Palavra brilha de Gloria em Gloria.

E é neste ponto que Paulo assume a maior ousadia quando compara a caducidade, o esclerosamento da Lei frente a eterna vida produzida pelo ministério do Espírito.

Mas sua ousadia não pára aí. Ele chama, fundado na certeza da Graça, até mesmo Moisés para um frente a frente, pois, diz:

“E não somos como Moisés que punha véu sobre a face, para que os filhos de Israel não atentassem na terminação do se desvanecia”.

Assim, ele diz que na Graça ele se sente com ousadia para tirar até mesmo a mascara de Moisés. O véu de Moisés, para Paulo, não escondia a Gloria, mas seu desvanecimento, sua morte, sua incapacidade de reacender a face, mediante a Lei, com a Luz da Graça.

O problema, para o apostolo, é que aquele véu se tornara um elemento de natureza espiritual. O véu se transformara numa camada de presunção que cegava os sentidos para as demais percepções da vida!

Ora, como a Lei estava dada, e sua constituição era fixa—desde o elemento no qual fora inscrita: pedra—, até mesmo as suas observâncias externas tornavam-se, também, fixas. Portanto, dela não se poderia esperar que nascesse vida, pois, esta acontece apenas onde há o humos da liberdade.

Assim, diz Paulo, há um véu espiritual sobre os sentidos embotados de todos os legalistas, sejam eles judeus ou não!

A Lei embota os sentidos!

A Lei tira a sensibilidade para a Palavra!

Somente a “conversão” ao Senhor—e aqui Paulo não fala de se tornar “cristão” ou “membro de igreja” ou “crentes na Bíblia”, conforme hoje entendemos a idéia de “conversão”, mas de se render à Graça em Cristo—, é o que pode des-anuviar os sentidos cegados pela presunção gerada pelo sentimento de superioridade oriundo da observância externa da Lei, bem como, pelo pre-conceito que dela se origina, criando uma barreira invisível para a percepção da Palavra no coração.

“Até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles”—é o que diz Paulo!

O que Paulo nunca imaginou é que dois mil anos depois nós ainda constatássemos a mesma cegueira, e muito menos ainda poderia ele imaginar que tivéssemos que repetir a sua frase relacionada aos judeus legalistas, agora, reatualizada e aplicada aos “cristãos”.

“Até hoje, quando é lida a Bíblia, o véu está posto sobre o coração deles”—é o que com dor melancólica tem-se que dizer acerca da grande maioria dos cristãos, especialmente de seus “lideres” e “mestres”.

Assim, o que se disse acerca “deles” é o mesmo que hoje temos que admitir acerca de “nós mesmos”, pois, se ainda há Lei, não há revelação da Graça.

Isto porque somente na Graça o véu é retirado. E este tirar o véu é fruto da libertação do medo, e que só acontece em nós como obra do Espírito no coração do ser humano que não tem nenhum tipo de auto-suficiência, porque confiou des-assustadamente na obra consumada de Jesus na Cruz.

Assim, onde está-há o Espírito do Senhor, aí está-há liberdade!

Neste ponto o argumento de Paulo nos remete, na Graça, para uma postura diametralmente oposta àquela gerada pela Lei!

A Lei cobre o rosto, esconde o ser, camufla a culpa, veste-se de exterioridades compartimentais, se jactancia de seu conhecimento e teme mostrar a cara a Deus e ao próximo, daí, pela Lei, o ser não revelar jamais seu interior, pois, em o fazendo, mostrar seu estado de desvanecencia!

Na Graça, todavia, a salvação é o posto. Se a Lei cobre a face e esconde o ser, o Espírito, e a confiança na suficiência de Cristo, nos põe no extremo oposto dessa atitude:

“E todos nós com o rosto desvendado, contemplando como por espelho a gloria do Senhor, somos transformados de gloria em gloria, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito”—é o argumento antitético de Paulo.

E mais: não é algo apenas que ocorre na perspectiva individual, mas também, comunitária. Afinal, Paulo diz: “E todos nós...”

A minha tentação agora é prosseguir em II Coríntios. Todavia, julgo ser mais sábio—a fim de ser também sintético—, parar por aqui a fim de verificarmos as implicações dessa verdade em relação à nossa temática.

Primeiramente quero chamar a sua atenção para um fato. A maioria dos comentaristas bíblicos fica tão aferrado ao sentido “histórico” da Escritura em questão que não se dedica à percepção do que está dito para nós hoje.

Em segundo lugar, fica também claro que como nós somos seres ocidentais— de origem não judaica apesar de que, quase todos nós, sermos pessoas de origem culturalmente judaico-cristã—, na maioria das vezes, nos permitamos ler a passagem apenas como critica aos judeus legalistas ou aos cristãos judaizantes; esquecendo-nos que a Escritura em questão não é “pedra”, é Palavra do Deus Vivente, e é re-atualizada em cada novo contexto da história. Portanto, é algo para nós, hoje!

A terceira observação é que as implicações do que Paulo diz aqui, transcendem, em muito, ao contexto histórico imediato, e recaem sobre todos os conteúdos da Teologia Moral de Causa e Efeito—sejam eles judaicos, espíritas kardecistas, afro-ameríndios, católicos, evangélicos, animistas ou hindus!

Aí está o nosso problema: nós lemos a Palavra emblematicamente, o que nos faz pensar que ela foi dirigida a “outros”, não à nós!

Assim, onde se diz judeu não se pensa em nada que não seja “judaico”. É o que está “escrito” trabalhando contra o que foi “dito”!

A questão é que na maioria das vezes, onde se lê, negativamente, “judeu” ou “fariseu”, dever-se-ia ler “legalista”, “moralista”, “auto-suficiente”, ou mesmo, um praticante de qualquer Teologia Moral de Causa e Efeito e seus pretensos elementos de auto-justificação, fundados na presunção humana de agradar a Deus por seus próprios méritos!

Ora, isto posto, o texto em questão tem naqueles que Paulo chama de “todos nós com o rosto desvendado” um grupo que na história do Cristianismo é uma minoria insignificante!

A maior parte de nós é membro da “igreja em Corinto” e somos traidores do apostolo Paulo, pois nos entregamos aos “falsos apóstolos” e a seu “evangelho adulterado”, mesmo que embrulhado com papel de presente estampados com símbolos “cristãos”.

Quem, honestamente, pode dizer que a História do Véu não é também a História do Cristianismo?

Quem, sinceramente, não percebe que nós somos hoje, na maior parte dos casos, a repetição dos mesmos conteúdos humanos e espirituais contra os quais Jesus, os profetas, Paulo, os apóstolos e a Palavra se insurgem nas Escrituras?

Ninguém se engane!

Nós, cristãos, somos também parte do Povo do Véu! E nossos sentidos estão igualmente embotados para a percepção do Evangelho!

Como eu já disse antes, a aceitação do Jesus Histórico nada tem a ver com o acolhimento dos conteúdos de Sua Palavra!

Ou seja:

É possível conhecer a Jesus segundo a carne e não segundo o Espírito!

É a pressuposição da vigência da Lei o que nos impede de discernir o espírito da Palavra e a palavra do Espírito, com liberdade para mostrar a cara, crendo que somente pela expressão des-amedrontada do ser que confiou na Graça, é que vem a conversão incessante, de gloria em gloria, tendo a Jesus como a referência-infusa-cotidiano-existêncial, para a mudança.

Hoje as pessoas se convertem à “igreja”, não à Cristo!

É por esta razão que os conteúdos do Evangelho da Graça estão tão adulterados entre nós. E pior: não enxergamos nada disso, pois, à semelhança deles—os judeus, os fariseus, os cristãos judaizantes—, nossos sentidos também estão “embotados”.

A Graça é hoje a mais escandalosa de todas as mensagens cristãs!

E é por esta razão que não se pode nem mesmo usar mais as “nomenclaturas” do Cristianismo a fim de definir o conteúdo das palavras do Evangelho, pois, quase todos os termos se revestiram de outras conotações e de outros conteúdos.

A terminologia já não serve mais, pois, seus conteúdos foram adulterados por um “outro evangelho”, que usa os termos de sempre, mas nega, na prática, seus conteúdos inegociáveis e eternos!

Por exemplo, para Paulo, “lutar juntos pela fé evangélica” significava não fazer concessões que adulterassem os conteúdos do Evangelho da Graça de Deus!

Hoje, todavia, isto significa nos unirmos contra os que não nos aceitam como os “representantes” de Cristo na Terra!

Ora, neste sentido—com as conotações que a palavra “evangélico” carrega entre nós—, Paulo já não a usaria, pois, nossa prática relacional nega aquilo que ele entendia como evangelho; e nossos conteúdos, falsificam ainda mais o significado original da mensagem à qual ele fazia referência.

Pior do que isto, entretanto, é saber que Paulo, por exemplo, não nos reconheceria como cristãos, mas como pagãos não convertidos ao Evangelho da Graça de Deus!

Por muito menos ele escreveu aos Gálatas e aos Coríntios temendo haver corrido em vão!

Mas e se ele estivesse presente num ano eleitoral no Brasil? Se visse e soubesse de todas as negociações de almas-votos que são feitas em Nome de Jesus? se visse “cristãos” curvados aos ídolos visíveis e invisíveis, cultuando imagens—que vão das de barro e gesso à imagem como reputação ou, marketeiramente, apenas como “imagem”? e se assistisse pela televisão a venda de todos os significados cristãos na forma de crença em objetos de energia espiritual pagã? e se visitasse uma “igreja” e assistisse filas de pessoas para andarem sobre sal grosso, ou para mergulharem em águas tonificadas do Jordão e a passarem pela Cruz de Jesus—que nesse caso é iluminada com neon e não passa de um tapume religioso extremamente brega—a fim de ganharem um carro zero, como pagamento pela sua crença? e se ele soubesse agora que a fé é um sacrifício que se expressa como dízimos, como troca de bênçãos por dinheiro, de cura pelo sacrifício de longas novenas e correntes, que só não são “quebradas” se a pessoa não deixar de largar sempre algum dinheiro no altar-bolso dos pastores?

O que enojaria a Paulo, todavia, seria ver pastores oferecendo o “sangue do Cordeiro” ––e que no caso é um suco de uva—e, segundo o anuncio, a pessoa deve ir ao templo e levar para casa o “sangue do Cordeiro” a fim de ungir a casa de trás para frente e da frente para trás. Desse modo estão voltando para muito menos que as materialidades da imolação do sangue de um cordeiro—ordenada por Deus no Êxodo — indo para um poderoso suco de uva. E o suco de uva, que é menos que o sangue de um cordeiro na simbolização do Êxodo—período usado pela seita para amparar biblicamente a sua campanha de dinheiro—, é apresentado como “o Sangue do Cordeiro”, que não é mais o que Jesus fez na Cruz e é apropriado somente pela fé na Palavra, mas passou a ser um fetiche, uma pedra de toque, uma imantação animista da uva, uma regressão ao paganismo mais primitivo, uma mágica de bruxos, uma blasfêmia, um estelionato satânico de uma verdade com a qual não se brinca impunemente: “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue, tem a vida eterna... As palavras que vos tenho dito são espírito e são vida”—conforme o Cordeiro.

Desse modo, Paulo veria aturdido o regresso da fé evangélica aos tempos dos cultos feitos à Baal, para as imagens de escultura, para um tempo onde nem sombra ainda havia das sombras das coisas que haviam de vir.—coisas essas, que até mesmo perderam a simbolização em razão de Jesus haver sido o cumprimento de todas elas! A epistola aos Hebreus foi escrita por muitíssimo menos!

Fazer o que estão fazendo da santidade do sangue do Cordeiro, tornando-o num amuleto de infusão animista e de interesse cambista, e que se materializa num suco de uva que carrega em si o poder de benzer uma casa e protege-la de todo mal, é insuportável, enojante, blasfemo e é Anátema!

Paulo vomitaria!

E Jesus?

O escritor de Hebreus diria que estão brincando com fogo ardente e consumidor e crucificando o Filho de Deus não apenas uma segunda vez, mas todos os dias—fazendo Dele um produto de barganha, mágica e fetichismo, e que leva as pessoas não à Jesus, mas sim à “sessão”, pois, também segundo os mesmos “pastores”, Deus só fala no lugar onde eles, os pastores, estão com a sacola na mão!

E eles precisam que Deus se confine em seus templos, se imante nos seus sucos de uva—e outros produtos mágicos—e se deixe comprar pelo dinheiro depositado como sacrifício aos pés desses lobos que oferecem a Jesus como “poder” que se leva para casa em “pacote”; Cristo como “produto simbólico” que pode ser o Pai das luzes, não conforme Tiago, mas conforme Alam Kardec; o Sangue do Cordeiro como suco de uva bom para “proteger a casa”; sim! assim fazendo do que foi feito por Jesus, de Graça, de uma vez e para sempre, algo a ser vendido pelos camelôs do engano e do estelionato!

Meu Deus, e se... Paulo visse...!?

Sim, e se Paulo nos visitasse? Que epístola nos escreveria? Será que a escreveria? Será que não nos trataria como o fez com as “sinagogas” durante a sua vida?

Ou seja: sendo acolhido e sendo-lhe dada a palavra, ficava até ser expulso, para depois disso abrir uma nova porta à Palavra, mesmo que fosse na casa vizinha, como foi no caso de Corinto!?

Ora, ser evangélico, antes–digo: para Paulo—significava ter compromisso de fé e vida com o Evangelho de Jesus. Hoje, ser “evangélico” é pertencer a uma “igreja”, uma instituição religiosa que roubou o direito autoral do termo, falsificou-o e se utiliza dele praticando um terrível “estelionato” simbólico.

Assim, ser evangélico já não tem nada a ver com ser Povo das Boas Novas de Jesus, mas ser membro de uma instituição religiosa que se utiliza das terminologias, enquanto, na maior parte das vezes, nega os conteúdos originais da expressão.

E se continuarmos assim, dentro de pouco tempo, quem for genuinamente evangélico—ou seja: alguém que crê conforme a Boa Nova da Graça em Cristo revelada nos evangelhos—, terá que deixar de se auto-definir desse modo sob pena de que as pessoas pensem que o Evangelho tem alguma coisa a ver com os “evangélicos”.

Nos dias de hoje, quase sempre, ser “um evangélico” já não tem nada a ver com ser evangélico conforme o apostolo Paulo.

Hoje, quando um evangélico “evangeliza”, em geral, ele o faz a fim de que a “igreja” cresça como poder histórico visível. Ou seja: “evangelização” significa crescimento numérico sob o pretexto de que se quer salvar as almas do inferno. Pelo menos é isto que se diz e é isto que as “ovelhas” pensam, pura e ingenuamente.

De fato, se se conversar ou se se tiver alguma intimidade com o meio pastoral, ver-se-á que na maioria das vezes corre-se não atrás da vida humana, mas dos recursos humanos que com as multidões também chegam para dentro do negócio religioso.

Portanto, não é de admirar que o marketing seja hoje um dos mais importantes instrumentos usados pela “igreja”. Apenas uma “igreja” precisa de marketing. Isto porque quem de fato é, não tem que se preocupar em parecer ser.

O marketing religioso é o lugar onde nossos ídolos são fabricados e polidos, de tal modo que sua “imagem” possa continuar a inspirar os devotos ou a enganar os que se impressionam com aparências.

O marketing como pro-moção pessoal, é moral, pois, é imagem de escultura, sendo, também, idolatria!

Explosão numérica, na História da Igreja, quase sempre correspondeu a diluição tanto da Palavra, como do caráter do discipulado, bem como implicou em des-significação da alma humana, afinal, uma multidão pode se beneficiar da Palavra, quando há Palavra, mas não pode experimentar reconstruções de individuação, pois, nas massas, ninguém cresce como indivíduo na comunhão fraterna, na afirmação individual e nos carinhos de quem conhece e se importa, pois, tais realidades, inexistem em todo processo de massificação.

Além disso, milhares de “acomodações” precisam ser feitas em relação ao conteúdo essencial do evangelho quando se utiliza do marketing religioso ou das associações políticas, culturais e econômicas que daí advêm— ou seja: da rendição ao significado-des-significado do capital das massas, que são reduzidas apenas ao testemunho de poder majoritário que elas trazem aos lideres, enquanto as almas dos indivíduos viram apenas números.

Quando Paulo evangelizava isto significava levar às pessoas a consciência da Graça salvadora de Jesus e da possibilidade da experiência da liberdade-salvadora, tanto na perspectiva individual, como também na comunitária. O resultado, portanto, não é o surgimento de um número a mais para as estatísticas celestiais, mas uma nova criatura, que já começa a se humanizar na Terra, nos vínculos e nas mutações dinâmicas e permanentes que o Espírito da Graça, em Cristo, faz nascer no Novo Homem!

Desse modo, como já disse antes, se Paulo estivesse vivo hoje, provavelmente, ele nos diria que nós ainda não somos convertidos, pois, voltamos atrás, e aderimos aos conteúdos que negam a Cruz de Cristo!

Isto nos coloca, no mínimo, diante de três reflexões. A primeira é que a atual “consciência cristã”, é, na maior parte das vezes, anti-cristã, e uma clara e escrachada negação dos conteúdos do Evangelho de Jesus!

A segunda, é a impossibilidade hermenêutica de que a Leitura da Escritura feita com “véu na face” possa nos conduzir à revelação da Palavra da Graça!

Portanto, não importa o “método” ou a “escola hermenêutica” em questão. Na Graça até o pior de todos os “métodos” trás mais revelação da Palavra que o melhor método hermenêutico usado com as viseiras da Lei, da Moral, dos Legalismos, dos Carismatismos narcisistas (que faz do totem carismático a forma referencial de ser para os demais), e seus derivados!

Todos são apenas o sub-produto da formula conceitual da Teologia Moral de Causa e Efeito!

É triste ver pessoas cristãs, inteligentes, cultas, preparadas, letradas, instruídas, e com capacidade de “ler”, não conseguirem levar as implicações do que entendem, mesmo do ponto de vista da compreensão cognitiva, até as últimas conseqüências de sua própria percepção!

E por quê? Porque ainda estão presas às sistematizações da Lei às quais o Cristianismo subjugou a Palavra que pode nos libertar! Mas não sendo a Palavra, não liberta. E se não liberta, escraviza e gera medo!

Enquanto não se abandona o véu e se põe a cara para fora, olhando na Graça para a Graça, não se vive a dinâmica da conversão que muda não apenas as exterioridades do comportamento, mas as essências do ser e isto de modo constante e permanente.

Afinal, são dinâmicas diametralmente opostas entre si: uma cobre a face, a outra a põe para fora!

Ora, isto no remete para a terceira constatação. A Teologia Moral de Causa e Efeito—que é a mãe da Síndrome do Véu—é a patrocinadora de nossas piores doenças!

O medo que esconde o ser transforma o interior humano num viveiro de enfermidades psicopatológicas. Literalmente, o ser se desvanece. Assim é que a História do Cristianismo é eivada de enfermidades numa demonstração tão escandalosa que nega a fé em Jesus.

Ou seja: se o Evangelho de Cristo gera algo como o Cristianismo e seus derivados históricos—incluindo-se, obviamente, os “evangélicos”—então, ele não é a Verdade!

Assim, os cristãos, até neste particular, foram objeto de seu próprio veneno e juízo sobre os demais homens. Pregaram não a Graça, mas a teologia de causa e efeito e seus veredictos.

Hoje—e não é de hoje—os mesmos critérios se voltaram contra nós. Ao nos oferecermos ao mundo como o efeito visível de nossa relação causal com Deus, e, após isto, com a maior cara-de-pau, nos exibirmos como a demonstração comportamental do efeito, sem o percebermos, demos e continuamos a dar um passo a mais em nosso auto-enagano: jactamo-nos de nosso comportamento e, sem o discernirmos, tornamo-nos aos olhos do mundo a Causa de nossa própria salvação. E como nosso “showcase” de comportamento nega a mensagem de Jesus, e, pior ainda, como nossa saúde humana e histórica não visibiliza nem mesmo aquilo do que nos jactamos—nossa superioridade Moral e humana sobre os demais homens—, caímos em nossa própria armadilha e desviamos o olhar humano do único ponto de referência para todos—para o indivíduo, a igreja e o mundo—, que é Cristo.

Esta é a razão pela qual o Cristianismo, no mundo ocidental, tornou-se o principal patrocinador da des-percepção do Evangelho e o agente mais corruptor de todos os conteúdos da Verdade de Deus em Sua Palavra.

O Cristianismo histórico se tornou o pior promoter de qualquer Palavra do Evangelho, pois, para nós, o Evangelho é apenas uma versão cristã da Lei, e de uma Lei brega, feia, estereotipada, infantil, presunçosa e des-cumprida pelos seus patrocinadores.

Assim, a doutrina do Purgatório é verdade para todos os cristãos—incluindo os protestantes e evangélicos!

E por quê? Ora, dizemo-nos “salvos” pela Graça, na chegada. Daí em diante, somos “santificados” pela Lei. Então, ficamos num limbo, num purgatório existencial sobre a Terra, pois, nem nos tornamos filhos da Graça a vida toda e nem nos entregamos aos rigores da Lei com honestidade. Desse modo, não usufruímos nem a saúde e nem a paz que vem da Graça e, nem tampouco, conseguimos viver pela Lei. Ou seja: vivemos em permanente estado de transgressão e culpa.

E quanto mais existimos nesse “purgatório”, mais orgulhosos, raivosos, arrogantes e mal-humorados nos tornamos. Afinal, nós sabemos que nós não passamos de um grande “estelionato” histórico, pois, no coração, nós temos consciência de que não somos nem uma coisa nem outra: nem Gente da Graça e nem tampouco o Povo da Lei.

Então, nos tornamos os doentes que vendem cura!

Somos como o homem que sofreu um derrame generalizado—perdendo seus movimentos e poder de agir—e, ainda assim, se oferece ao mundo para dar aula de levantamento de peso, estética corpórea, e garante que é capaz de correr as Olimpíades, não sendo capaz de nem mesmo enxugar a própria baba que cai de seus lábios arrogantemente murchos, e, muito menos ainda, é capaz de cuidar do próximo que vive ao seu lado no mesmo estado.

O Cristianismo não se enxerga. E os cristãos, raramente, o conseguem fazer!

Meu trabalho há muitos anos é tentar separar, ante a percepção histórica das pessoas, o que é o Evangelho daquilo no que o Cristianismo se tornou. Assim, vou vendo muitos voltarem a Cristo, ainda que, em muitos casos, jamais consigam botar os pés numa “igreja”. E, agindo assim, penso estar, de fato, também evangelizando, anunciando a Boa Nova aos Gentios como eu mesmo; ou seja: dizendo-lhes que estamos livres do Cristianismo a fim de podermos servir a Deus em novidade de vida e não segundo a caducidade da letra e nem tampouco de acordo com a perversão cristã do evangelho.

Assim faço por julgar que essa é a única maneira de ajudar aqueles que encontraram a Jesus, mas que jamais conseguiram encontrar na Terra a Sua Igreja porque esta não está perceptível aos nossos sentidos históricos, institucionalmente falando!

O Cristianismo não carrega nem os conteúdos do Evangelho e nem se parece com Jesus!

E como creio que o Evangelho de Cristo é a Verdade que liberta, só posso—juntamente com milhões de outros seres humanos—, pensar que o que experimentamos, na maior parte do tempo, até aqui, é uma “falsificação do evangelho”, especialmente porque os conteúdos do Evangelho de Cristo foram institucionalizados como doutrinas ( a letra mata) e formas (odres envelhecem) que negam a Graça, a Misericórdia e a Liberdade em fé, que Jesus conquistou na Cruz.

Jesus não veio ao mundo para criar um Circo, em alguns casos; uma Penitenciária, conforme outros casos; um Estado Soberano, conforme o Vaticano Católico e os “vaticaninhos” dos outros grupos e seitas cristãs; e, nem tampouco, um Hospício, como acontece na maioria dos casos!

Além disto, Ele não veio ao mundo para que Sua mensagem se transformasse numa ideologia moral ou política; e, nem ainda, para que ela, a mensagem, gerasse uma espécie de Admirável Mundo Novo, onde, pelo controle, todos se tornassem clones de comportamentos que matam as produções individuais e saudáveis das dinâmicas do ser.

Até mesmo a Reforma Protestante não percebeu o tamanho nem a profundidade do engano ao qual nós, cristãos, nos havíamos rendido, inconscientemente, é claro!

As 95 tese de Lutero puseram a Escritura, Cristo, a Graça e a Fé num pacote “sistematizado”, como se fossem coisas diferentes uma da outra.

O que nem Lutero e nem Calvino—o mais culto deles, embora Lutero pareça ter sido mais humano em suas expressões francas sobre sua condição humana— perceberam em plenitude, é que havia não apenas uma “Reforma Doutrinária” a ser feita, mas, muito antes disso, uma “Desconstrução do Pressuposto Conceitual” a ser realizada!

E por quê? Porque o problema não era, sobretudo, “doutrinário”. Os erros doutrinários da Igreja Católica não eram “tópicos isolados”. Eles eram todos o sub-produto da mesma e única coisa: a Teologia Moral de Causa e Efeito, que estava presente em tudo e que continuou, mesmo que sob outras insígnias, a determinar também os valores do Protestantismo.

Crendo assim, Lutero não precisaria de 95 teses. Bastava uma. E essa é aquela “única” tese de Paulo em todas as suas epístolas: a Graça de Cristo é o fim de toda Lei e o começo-realizado de toda Vida, para a paz e a justiça de todo aquele que crê!

As demais “teses” não passavam de aplicativos históricos e circunstanciais, mas o Protestantismo as transformou, posteriormente, em letras e formas fixas, perdendo assim, outra vez, as mobilidades e liberdades histórico-aplicativas da missão de fazer nascer uma reforma que sempre se auto-reformasse, conforme os tempos e as épocas, e de acordo com a Imutabilidade dos Princípios da Palavra. A tese, portanto, é uma só. Os aplicativos e suas des-construções e re-construções é que precisam ser permanentemente re-atualizados!

E mais: é somente quando se tem a coragem de se fazer essa ruptura radical é que o véu sai da face e nós ganhamos, movidos pelas certezas da fé na Graça, a coragem de botar o rosto para fora, saindo de nossos medos, sombras, fobias e auto-justificações neuróticas!

Neste sentido, perdoem-me os irmãos que beatificaram São Lutero e São Calvino—que, sem dúvida, são “santos protestantes” com as mesmas características de infalibilidade interpretativa da Escritura de um Papa Católico—, acerca dos quais eu digo, sendo muito menos atrevido do que Paulo— quando do ponto de vista judaico de seus dias, disse “E não somos como Moisés...”—, que aqueles dois baluartes da fé, Lutero e Calvino, ainda ficaram aquém do que é radicalmente proposto, pois, por razões que somente a Deus pertencem

Caio Fábio

quinta-feira, 14 de julho de 2011

De qual denominação você é?

A pergunta mais frequente de quem tem na própria vida o mesmo espírito do video publicado no site do Caio.








Sacralizaram as estruturas religiosas. Esse mal, não é somente privilégio do cristianismo.
Assista o vídeo e reflita sobre a tua religiosidade e aquilo que realmente tem valor diante de Deus.

Pare e pense

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Deus nos livre de um Brasil evangélico


Começo este texto com uns 15 anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que outdoors eram permitidos em São Paulo, alguém pagou uma fortuna para espalhar vários deles, em avenidas, com a mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus. Povo de Deus, declare isso”.

Rumino o recado desde então. Represei qualquer reação, mas hoje, por algum motivo, abriu-se uma fresta em uma comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil tornar-se evangélico. A mensagem subliminar da grande placa, para quem conhece a cultura do movimento, era de que os evangélicos sonham com o dia quando a cidade, o estado, o país se converterem em massa e a terra dos tupiniquins virar num país legitimamente evangélico.

Quando afirmo que o sonho é que impere o movimento evangélico, não me refiro ao cristianismo, mas a esse subgrupo do cristianismo e do protestantismo conhecido como Movimento Evangélico. E a esse movimento não interessa que haja um veloz crescimento entre católicos ou que ortodoxos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem que virar "crente", com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na madeira).

Avanços numéricos de evangélicos em algumas áreas já dão uma boa ideia de como seria desastroso se acontecesse essa tal levedação radical do Brasil.

Imagino uma Genebra brasileira e tremo. Sei de grupos que anseiam por um puritanismo moreno. Mas, como os novos puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu?

Não gosto de pensar no destino de poesias sensuais como “Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do Chico. Será que prevaleceriam as paupérrimas poesias do cancioneiro gospel? As rádios tocariam sem parar “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo em Fé”?

Uma história minimamente parecida com a dos puritanos provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios. Novos Torquemadas seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes. Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos Drummond de Andrade?

Como ficaria a Universidade em um Brasil dominado por evangélicos? Os chanceleres denominacionais cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que se desqualificasse o alucinado Charles Darwin. Facilmente se restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória em faculdades de medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria dos hereges loucos e Derridá nunca teria uma tradução para o português.

Mozart, Gauguin, Michelangelo, Picasso? No máximo, pesquisados como desajustados para ganharem o rótulo de loucos, pederastas, hereges.

Um Brasil evangélico não teria folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam barulhentas. O futebol morreria. Todos seriam proibidos de ir ao estádio ou de ligar a televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada, de várzea aconteceria quando?

Um Brasil evangélico significaria que o fisiologismo político prevaleceu; basta uma espiada no histórico de Suas Excelências nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para saber que isso aconteceria.

Um Brasil evangélico significaria o triunfo do “american way of life”, já que muito do que se entende por espiritualidade e moralidade não passa de cópia malfeita da cultura do Norte. Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja Católica e viria a criar uma elite religiosa, os ungidos, mais perversa que a dos aiatolás iranianos.

Cada vez que um evangélico critica a Rede Globo eu me flagro a perguntar: Como seria uma emissora liderada por eles? Adianto a resposta: insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.

Prefiro, sem pestanejar, textos do Gabriel Garcia Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge Amado a qualquer livro da série “Deixados para Trás” ou do Max Lucado.
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Toda a teocracia se tornará totalitária, toda a tentativa de homogeneizar a cultura, obscurantista e todo o esforço de higienizar os costumes, moralista. 
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O projeto cristão visa preparar para a vida. Cristo não pretendeu anular os costumes dos povos não-judeus. Daí ele dizer que a fé de um centurião adorador de ídolos era singular; e entre seus criteriosos pares ninguém tinha uma espiritualidade digna de elogio como aquele soldado que cuidou do escravo.
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Levar a boa notícia não significa exportar uma cultura, criar um dialeto, forçar uma ética. Evangelizar é anunciar que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar, encenar, praticar a justiça e criar meios de solidariedade; Deus não é rival da liberdade humana, mas seu maior incentivador.

Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.

Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim

Confissões de um Exdependente de Igreja




 Outro dia um pastor observou que eu deveria confessar ao leitor impenitente da Bacia, que não tem como concluir isso lendo apenas o que escrevo, que não vou à igreja faz mais de dez anos. Ele dava a entender que essa confissão provocaria uma queda sensível na minha popularidade; percebi imediatamente que ele estava certo, e que mais cedo ou mais tarde teria, para podar os galhos da celebridade (porque a fama é uma espécie de compreensão), deixar de contornar indefinidamente o assunto.


Quanto mais penso na questão, no entanto, mais chego à conclusão que o que tenho de confessar é o contrário, e ao resto do mundo, não aos amigos que convivem com desenvoltura entre termos como gazofilácio, genuflexão, glossolalia e graça irresistível. Devo explicações à gente comum que vê o domingo, incrivelmente, como dia de descanso – dia de ir à praia, de andar de bicicleta no parque, de abraçar os amigos ao redor de um churrasco, de correr atrás de uma bola ou de encontrar a paz diante de uma lata de cerveja e uma tela radiante.


Preciso confessar que durante trinta anos fui consumidor de igreja. Durante trinta anos fui dependente de igreja e trafiquei na sua produção.


Devo confessar o mais grave, que durante esses anos abracei a crença (em nenhum momento abalizada pela Escritura ou pelo bom senso) que identificava a qualidade da minha fé com minha participação nas atividades – ao mesmo tempo inofensivas, bem-intencionadas e auto-centradas – de determinada agremiação. Em retrospecto continuo crendo em mais ou menos tudo que cria naquela época, porém essa crença confortante e peculiar (espiritualidade = participação na igreja institucional) fui obrigado contra a vontade, contra minha inclinação e contra a força do hábito, a abandonar.


Preciso deixar claro que não guardo daqueles anos qualquer rancor; de fato não trago deles nenhuma recordação que não esteja envolta em mantos de nostalgia e carinho. Ao contrário de alguns, não sinto de forma alguma ter sido abusado pela igreja institucional; sinto, ao invés disso, como se tivesse sido eu a abusar dela. Minha impressão clara não é ter sido prejudicado pela igreja, mas de tê-la usado de forma contínua e consistente para satisfazer meus próprios apetites – apetites por segurança, atenção, glória, entretenimento, aceitação.


Se hoje encaro aqueles dias como uma forma de dependência é porque acabei aceitando o fato de que a igreja como é experimentada – o conjunto de coisas, lugares, atividades e expectativas para as quais reservamos o nome genérico de igreja – representam um sistema de consumo como qualquer outro. As pessoas consomem igreja não apenas da forma que um dependente consome cocaína, mas da forma que adolescentes consomem telefones celulares e celebridades consomem atenção – isto é, com candura, com avidez, mas muitas vezes para o seu próprio prejuízo.


Todo sistema de consumo confere alguma legitimação, isto é fornece ao consumidor pequenas seguranças e pequenas premiações que fazem com que ele se sinta bem, sinta-se uma pessoa melhor (ou em condições privilegiadas) por estar desfrutando de um produto ou serviço de que – e isto é importante na lógica interna da coisa – não são todos que desfrutam.


As igrejas institucionais, por mais bem-intencionadas que sejam (e, creia-me, há muito mais gente bem-intencionada envolvida na criação e na sustentação delas do que seria de se supor) funcionam precisamente dessa maneira. Não é a toa que tanto a palavra quanto o conceito propaganda nasceram, historicamente falando, nos salões eclesiásticos. Se hoje há shopping centers e roupas de marca é porque a igreja inventou o conceito de propaganda e de consumo de massa. Foi a igreja a primeira a vender a idéia de que vestir determinada camisa e ser visto em determinada companhia demonstram eficazmente o seu valor como pessoa; foi a primeira a promover a noção simples (mas cujo tremendo poder as corporações acabaram descobrindo) de que o que você consome mostra que tipo de pessoa você é.


As pessoas que consomem igreja não têm em geral qualquer consciência de que estão se dobrando a um sistema de consumo, mas as evidências estão ali para quem quiser ver. A igreja não é um lugar a que se vai ou um grupo de pessoas que se abraça, mas uma marca que se veste, um produto que se consome continuamente. Tudo de bom que costumamos dizer sobre a igreja reflete, secretamente, essa nossa obsessão com o consumo – “o louvor foi uma benção”, “o sermão foi profundo”, “o coro cantou com perfeição”, “a palavra atingiu os corações”, “Deus falou comigo”. Em outra palavras, tudo que temos a dizer sobre a experiência da igreja são slogans. Na qualidade de consumidores, o que fazemos é retroalimentar nossa dependência, promovendo continuamente nosso produto na esperança de angariar mais consumidores e portanto mais legitimação.


O curioso, o verdadeiramente paradoxal, é que nada nesse sistema circular de consumo (ou em qualquer outro) tem qualquer relação com espiritualidade, com fé ou com a herança de Jesus. Ao contrário, sabemos ao certo que Jesus e os apóstolos bateram-se até a morte no esforço de demolir a tendência muito humana de encarcerar (isto é, satisfazer) os anseios emocionais e espirituais das pessoas em sistemas de consumo e legitimação (isto é, sistemas de controle).


O russo Leo Tolstoi acreditava que, diante da suprema singeleza do ensino de Jesus, levantar (e em seu nome!) uma máquina implacável e arbitrária como a igreja equivalia a restaurar o inferno depois que Jesus tornou o inferno obsoleto. De minha parte, vejo a igreja institucional como um refúgio construído por mãos humanas para nos proteger das terríveis liberdades e responsalidades dadas por Deus a cada mortal e que Jesus desempenhou de modo tão espetacular. Por outro lado, talvez esse refúgio seja ele mesmo o inferno.


No fim das contas você não encontrará na igreja nada que não seja inteiramente atraente e desejável, e aqui está grande parte do problema. Vá a um templo evangélico no domingo de manhã e o que vai encontrar é gente amável, respeitável, ordeira, de banho tomado, sorridente, perfumada e usando suas melhores roupas – e é preciso reconhecer que há um público para esse tipo irresistível de companhia. O bom-mocismo reinante é tamanho, na verdade, que não resta praticamente coisa alguma do escândalo inicial do evangelho. Enquanto descansamos nesse abraço comum a verdadeira igreja, onde estiver (e talvez exista apenas no futuro), estará por certo mais próxima do dono do bar, da vendedora de jogo do bicho, do travesti exausto da esquina, do divorciado com seu laptop, dos velhinhos que babam em desamparo e das crianças que alguém deixou para trás. Certamente não usará gravata e não terá orçamento anual nem endereço fixo.


Portanto nada tenho contra aquilo que a igreja diz, que é em muitos sentidos bom e justo, mas não tenho como continuar endossando aquilo que a igreja dá a entender – sua mensagem subliminar, por assim dizer, mas que fala muitas vezes mais alto do que qualquer outra voz. Com o discurso eclesiástico oficial eu poderia conviver indefinidamente (como de fato já fiz), mas seu meio é na verdade sua mensagem, e frequentar uma igreja é dar a entender:


1. Que aquela facção da igreja é de algum modo mais notável, e portanto mais legítima, do que todas as outras;
2. Que o modo genuíno de se exercer o cristianismo é estar presente nas reuniões regulares e demais atividades de determinada agremiação, ou seja, que a devoção é uma espécie de prêmio de assiduidade;
3. Que o conteúdo da crença é mais importante do que o desafio da fé;
4. Que o caminho do afastamento do mundo, segundo o exemplo de João Batista, é mais digno de imitação do que o caminho do envolvimento com o mundo, segundo a vida de Jesus;
5. Que o modo de vida baseado na busca circular pela legitimação é mais respeitável do que o das pessoas que conseguem viver sem recorrer a esses refrigérios;
6. Que o modo adequado de honrar a herança de Jesus é dançar em celebração ao redor do seu nome, ignorando em grande parte o que ele fez e diz.


Está confirmada, portanto, a ambivalência da minha posição em relação à igreja institucional. Por um lado, sinto falta dos seus confortos; por esse mesmo lado, respeito a inegável riqueza de sua herança cultural, que não gostaria de ver de modo algum apagada. Por outro lado, ressinto-me de que o nome singular de Jesus permaneça associado a um monstro burocrático no que tem de mais inofensivo e opressor no que tem de mais perverso, quando sua vida foi a de um matador de dragões dessa precisa natureza. Dito de outra forma, não tenho como condenar a permanência de alguma manifestação da igreja, mas não tenho como justificá-lo se você faz parte de uma.


Em janeiro de 1996 Walter Isaacson perguntou a Bill Gates a sua posição sobre espiritualidade e religião. Sua resposta entrará para os anais da infâmia – e não a dele. “Só em termos de alocação de recursos, a religião já não é coisa muito eficiente. Há muita coisa que eu poderia estar fazendo domingo de manhã”. Em resumo, o que dois mil anos de cristianismo institucional ensinaram ao homem mais antenado da terra é que religião é o que os cristãos fazem no domingo de manhã.
Só não ouse criticar o cara por sua visão rasa de espiritualidade. Fomos nós que demos essa impressão a ele, e só a nós cabe encontrar maneiras de provar que ele está errado.


Invente uma.
Paulo Brabo