sexta-feira, 18 de maio de 2012

Deus, liberdade e suicídio

Ricardo Gondim

Ficou famosa a frase de Albert Camus sobre o suicídio: “O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia.” O existencialista francês não contemplou, com certeza, a questão pelo ângulo que vou abordar. Pego, entretanto, a afirmação dele para mostrar que a inciativa de acabar com a vida radicaliza a ideia de liberdade.
O suicida desafia as questões fundamentais do livre arbítrio. A liberdade de dizer sim ou não à própria existência contrapõe qualquer conceito de soberania divina. Até onde Deus controla o dedo que puxa o gatilho ou a mão que enlaça o pescoço? O suicida cumpre algum propósito preconcebido antes de seu nascimento? Insisto em perguntar (sem cinismo): “Quem se mata interrompe por conta própria os planos divinos ou cumpre o papel que lhe foi designado antes da fundação do universo?”.
Para melhor entender o embaraço, imaginemos um debate sobre os limites da liberdade humana. O auditório está lotado. De um lado fica o grupo que defende teses deterministas: “cultura, genética e forças econômicas se somam a infinitos fatores circunstanciais, e ninguém é livre”. À esquerda, existencialistas meneiam a cabeça. Com chavões sartreanos, repetem: “a existência precede a essência, e a existência acontece no imperativo de ser livre”. No centro, teólogos agostinianos, dedo em riste, deixam claro: “a humanidade só conhece a liberdade de pecar”. Nas últimas cadeiras, niilistas gritam: “a vida não tem sentido algum e a própria necessidade de dar sentido à existência não passa de desespero em face da morte”. De repente, no meio da algazarra, um jovem se levanta. Ele carrega um revólver. Enfia o cano na boca, e antes que alguém possa evitar, puxa o gatilho.
No exato instante em que o rapaz escolhe acabar com a própria vida, os debatedores, perplexos, se entreolham. Não há o que dizer.
O susto deixa várias perguntas sem resposta. A brutalidade do gesto estava “escrita e determinada” por quais fatores? Deus? Ele tinha o código genético de matar-se? Em vidas passadas, selou aquela hora? Ou Deus o predestinou para tal insanidade? Alguma mão cobria a que executou o gesto? Quem ajudou ou, pior, empurrou o suicida para o abismo? É possível entender as forças sociais, genéticas ou instintivas que levam um rapaz a um ato tresloucado?
Por mais de um motivo, Camus acertou. O suicídio é, sim, um nó górdio tanto da teologia como da filosofia. No suicídio reside o mais radical e completo exemplo do livre arbítrio. A não interferência divina nas escolhas individuais ficam claras quando alguém se mata. Repetindo Sartre, o findar-se com as próprias mãos mostra que a humanidade “está condenada à liberdade”.
Aristóteles afirmou que mulheres e homens se diferenciam dos animais só por serem racionais. Descartes tentou ir além: humanos são mais excelentes por terem desenvolvido sentimentos. Rousseau, entretanto, procurou demonstrar que liberdade é o fator determinante para se entender a humanidade
Para o iluminista francês, somos livres porque dispomos da capacidade de aperfeiçoar-nos – ou de destruir-nos. Só os humanos conseguem libertar-se de instintos naturais quando agem. Um cachorro, que carinhosamente lambe a mão do dono, não é movido por virtude. Ele age sem noção. Desconhece que pode morder ao invés de lamber. Mas o torturador arranca as unhas do preso e o marido espanca a companheira por maldade; isto é, existia a possibilidade de não fazerem aquilo. Se em qualquer ação forçada, o crime se torna inimputável, o pitbull que destroça a criança não pode ser levado a qualquer tribunal e o pedófilo, sim.
O conceito de liberdade implica em ações não coagidas – ou manipuladas. Um ato só é virtuoso ou viciado se existir a possibilidade de eleger o oposto. É possível afirmar: liberdade é vocação. Deus decidiu criar o mundo para a liberdade. Seu intento único é amar; e liberdade é atributo do amor. Deus não criou por carência. Ele escolheu rodear-se de pessoas que pensam, sentem e decidem não porque necessitava dar satisfação a outra divindade ou para cumprir alguma demanda misteriosa. Deus criou porque sua natureza essencial é amar.
A Bíblia expressa com clareza: Deus é amor. Quem ama busca relacionar-se. E relacionamento significa valorizar o outro. Deus estima tanto que se expõe e se vulnerabiliza. Caso nunca tivesse criado, não lidaria com pessoas imperfeitas. E jamais experimentaria dor e frustração. Em seu apreço, a liberdade humana passa a ser o limite que Deus impõe a si mesmo.
Tal fragilidade pode ser bem compreendida nas metáforas do profeta Oséias e do Filho Pródigo. Nos dois, os amantes se veem em situação embaraçosa. O comportamento tanto da mulher como do filho causam dor; escapam ao controle do marido e do pai. Na parábola, o filho sai de casa. O pai não reage. A porta precisa ficar aberta. Não lhe interessa manter o filho constrangido. Resta ao velho esperar. O profeta se vê na desdita de amar uma leviana, que se prostitui com qualquer um. Sobra perdoar; e aguardar. Quem sabe ela voltará?
Comparando Deus a um imperador, temos uma leve insinuação da relação amor, liberdade. Certo rei dispõe de várias mulheres no harém. Ele, porém, se apaixona por Sulamita. Caso ordene, ela será conduzida à câmara real como objeto de prazer. Mas o monarca não quer desse jeito. Ele a vê em outro patamar. Para isso, precisa conquistar o seu coração. Mais complicado: ele também quer ser dela. Na busca do amor, por mais poderoso que seja, o imperador ficou vulnerável, indefeso.
Deus deseja cativar. Ele anseia por filhos, por amigos. E também quer ser nosso. Os amantes não se forçam. Impor-se e amar não combinam.
Deus é frágil? No amor, sim. Mas afirmar isso não o enfraquece, apenas descreve o poder do amor. O sofrimento de Deus não diminui a sua grandeza, apenas distingue o Aba de Jesus dos ídolos gregos. O sentimentos divinos ajudam a entender: o poder mais maravilhoso do universo não usa da coerção, ele é a plenitude dos afetos.
Jesus encarnou Deus e vimos as suas lágrimas. No Galileu, Deus se revelou empático. Por causa do Nazareno, ficou impossível conceber que a divindade tudo ordena, tudo dispõe e tudo orquestra. Não existe um deus que toca projetos sem levar em consideração as pessoas, que ele jura amar. Para promover a sua glória, Deus não tece sorrateiramente os fios da história. Não há subterfúgio em seu caráter.
As carnificinas de Aushwitz, Ruanda e Iraque não foram planejadas em algum tempo remoto. Deus não guia a bala perdida que mutila a criança na favela. A lógica que tenta transformar Deus em títere, que às vezes deixa os eventos correrem frouxos, é cruel. Se, para capitanear a história Deus fecha os olhos (vontade permissiva), ele é maquiavélico. Se orquestra horrores como etapas necessárias para cumprir uma ”vontade soberana”, ele é monstruoso. Um deus cruel, maquiavélico e monstruoso não merece ser adorado.
Começo, meio e fim da história não estão prontos. Se Deus se sente feliz em gerenciar cada nano evento e se preordenou, em sua providência, todos os fatos, a humanidade vive uma farsa. E se tudo está pronto: busca de justiça, indignação contra o mal e solidariedade não passam de iniciativas fúteis.
Prefiro aceitar que o mal nunca fez parte de qualquer projeto. O Deus da Bíblia sofre com a morte de inocentes e se indigna com a injustiça que condena bilhões à miséria. Ele ainda conclama homens e mulheres de boa vontade a serem pacificadores.
Não é certo confundir Jesus de Nazaré com o deus frio e distante dos gregos. Determinismo, antônimo de liberdade, anula o amor. Deus não planejou, determinou ou ajudou o rapaz a dar fim à própria vida. Vale bater na mesma tecla: Deus é amor.

“… e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”. [1Coríntios 1.25].
Soli Deo Gloria

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O Deus Idolatrado



1 - Deus é transformado em ídolo quando ocupa o imaginário das pessoas como o mais poderosos dentre todos os deuses. O monoteísmo afirma que existe apenas um Deus, e não que Deus é o deus mais poderoso. O primeiro mandamento, “não terás outros deuses”, não é uma proibição à adoração de outros deuses, mas uma afirmação de que não existem outros deuses. Na verdade, os outros deu...ses são fabricação da mente humana, isto é, ídolos. Toda vez que Deus é comparado com “outros deuses”, mesmo para que seja destacado como o maior e melhor, ele foi reduzido à categoria de ídolo. Deus é único.

2 - Deus é transformado em ídolo quando é confinado aos limites de imagens, locais, pessoas, ritos, símbolos, seres, ou qualquer outra coisa que dê a Ele uma medida, pois Deus é o Ser-Em-Si, não sujeito a tempo, espaço e modo. Deus é Espírito.

3 - Deus é transformado em ídolo quando se pretende que o relacionamento com ele seja destituído de quaisquer implicações morais, pois isso equivale a atribuir a Deus uma categoria de neutralidade, e, portanto, despersonaliza-lo. Deus é Espírito Pessoal.

4 - Deus é transformado em ídolo quando o relacionamento com Ele é fundamentado em relações de mérito e demérito, pois nesse caso o fator determinante do relacionamento é o humano, que faz por merecer ou deixa de merecer, isto é, Deus apenas reage. Deus é gratuidade.

5 - Deus é transformado em ídolo quando o relacionamento com Ele é fundamentado em relações de causa e efeito, pois isso implica confinar Deus às regras de um mecanismo que pode ser ativado ou desativado, e nesse caso se pretende manipular Deus através a descoberta dos botões que o fazem funcionar. Deus é incondicionado.

6 - Deus é transformado em ídolo quando as expectativas que se têm a respeito dele geram ao redor de questões meramente circunstâncias, pois o reino de Deus não é comida nem bebida, isto é, não está circunscrito às questões efêmeras e materiais. Deus é Eterno.

7 - Deus é transformado em ídolo quando é submetido à obrigatoriedades determinadas pela conveniência humana, pois Deus deixa de ser um fim em si mesmo e é transformado em meio para um fim maior. Deus é soberano.

8 - Deus é transformado em ídolo quando em seu nome se faz exigência de sacrifícios humanos, pois Deus não se alimenta de vidas humanas, sendo Ele mesmo o doador e mantenedor da vida. Deus é amor.

9 - Deus é transformado em ídolo quando é submetido a qualquer regra de qualquer ordem. Deus é incontrolável.

10 - Deus é transformado em ídolo quando se torna objeto de discussão, em detrimento de objeto de devoção e paixão, o que pode acontecer inclusive em relação a este texto que fica dizendo que Deus é isso e aquilo. Deus é indiscutível.


Ed René Kivitz

sábado, 17 de dezembro de 2011

Diabo: Relexão sobre sua personificação.



Levando em consideração a oniciência de Deus, isso quer dizer: Para Deus não existe passado e nem futuro, para Ele é sempre presente. Deus já sabia que os anjos iam cair, que os homens iam cair e para resolver o problema dos caidos, ele cria o inferno para mandar tudo mundo pra lá. Há, precisamos levar em consideração que Deus também é onipresente, issso quer dizer que ele está presente em todos os lugares ao mesmo tempo. Ele estará presente no inferno contemplando pranto e ranger de dentes das criaturas que ele mesmo criou; criaturas essas, que no presente ele já as criou caídas.

A grande questão sobre o tema é: Porque Ele criou o diabo, já que para Deus não existe futuro, ele já criou o diabo sendo diabo.

O diabo é mais forte que nós, só nos tenta para o erro e pecado, só veio para matar, roubar e destruir, consegue induzir e levar muitos para o inferno. Porque Deus criou o bicho? Só para ferrar a gente?

Ou cremos nesse loucura, ou repensamos a personificação do diabo e todas as experiências ditas demoníacas, incorporações e tudo isso, acreditando que são manifestações da mente humana, colocando sobre o homem total responsabilidade pelo seus atos.

É meus amigos, imagina se não tivermos a quem culpar? Vamos ter que colocar a nossa cara pra fora, vamos ter que nos enxergar, a imagem do coisa ruim vai se tornar a nossa própria imagem.

Isso continua, não precisa se suicidar.

sábado, 8 de outubro de 2011

Caio Fábio Aconselha Pastor



A maioria esmagadora dos pastores não chegariam nem próximo para discernir a alma e tudo aquilo que estava por traz da questão.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A institucionalização da inveja


Antes de começarmos a analisar a saída cristã para o capitalismo, vale à pena explorar os modos através dos quais o capitalismo domina nossa vida comum, a fim de não nutrirmos a ilusão de que estamos saindo dele quando na verdade não estamos.

O disciplinamento do desejo e da imaginação
Como observado acima, uma das características distintivas do fascismo é que ele opera como movimento de massa, dentro do qual a maioria busca ativamente a sua própria repressão e deseja as próprias coisas pelas quais é dominada e explorada. Esta é uma descrição muito acurada do estado de coisas produzido pelo neoliberalismo.
Mas como pode ser isso? No ocidente onde nasceu o neoliberalismo de modo geral não opera através do uso de violência, de ameaça ou força coerciva (embora violência, ameaça e força coerciva façam parte integral da globalização do neoliberalismo). Então o que leva tantos a escolherem livremente a sua própria repressão? Essa busca da maioria pela própria repressão é melhor explicada pelos modos através dos quais o neoliberalismo, em vez de usar a violência para controlar as massas, disciplina tanto os desejos quanto a imaginação das massas de modo a que elas possam controlar a si mesmas (Foucault).
A sugestão de que o desejo possa ser manipulado vai contra a ideologia dominante da teologia do neoliberalismo, que afirma que o desejo é uma força encontrada no interior das pessoas, inteiramente livre de influência externas. Em conformidade com isso, o neoliberalismo alega que, em vez de disciplinar o nosso desejo, o que faz é nos prover de uma sociedade em que somos livres para perseguir qualquer desejo que seja [de forma inerente] nosso. Uma análise mais profunda, no entanto, revela que essa é uma falsa ideologia imposta por aqueles que deliberadamente manipulam o desejo, e sustentam sua habilidade de manipular o desejo precisamente proclamando que o desejo é livre.
Para começar, o neoliberalismo manipula o desejo colocando na raiz do desejo a noção deprivação/escassez. Nesse sentido, vale observar a aliança existente entre o liberalismo econômico e a moderna psicanálise (a qual, vale lembrar, nasceu do capitalismo): enquanto o capitalismo nos fundamentou num mundo definido por escassez, a psicanálise expandiu essa noção colocando a privação dentro da própria psiquê. Sigmund Freud deu início a esse processo com suas reflexões sobre desejo (ou seja, libido), em que a carência é a existência edipiana por excelência; a psicanálise, embora tenha se distanciado de Freud, continua a operar segundo a noção dessa carência interna essencial1.
Não apenas o desejo é definido pela privação; o neoliberalismo também apresenta o desejo como insaciável, precisamente porque – como a economia de mercado nos faz lembrar continuamente – existe sempre algo de que estamos desprovidos. Em particular, existe sempre algo de que estamos desprovidos em comparação a outra pessoa, e dessa forma a privação se torna parte de um processo interminável de competição com o próximo2.
Isto, por sua vez, conduz ao segundo ponto: o modo em que o desejo é disciplinado ao ser enraizado no interesse próprio3. Aqui o desejo é reduzido ao grito infantil de “eu quero, eu quero, eu quero” e “me dá, me dá, me dá”. Uma economia impelida por interesse próprio, no entanto, é uma economia impelida pela ganância4. O resultado é “a institucionalização da inveja” e a onipresença da cobiça5. Da mesma forma, nada disso é surpresa quando se entende o neoliberalismo como uma forma de paganismo pois, de acordo com Paulo, a cobiça foi o pecado primal de Adão e é o emblema da humanidade adâmica6. Isso explica, além de tudo, tanto a competitividade quanto a parcialidade inerentes ao capitalismo, pois, como também observa Paulo, a cobiça se expressa em espírito de divisão e conduz de modo natural à violência7.
Em terceiro lugar, o desejo tem também sido condicionado porque tem sido alinhado à noção de merecimento: o indivíduo tem direito adquirido àquilo que deseja. Isso torna-se especialmente evidente no modo pelo qual o discurso dos “direitos humanos” foi sequestrado pelos ricos e poderosos e usado como meio de sustentar sua riqueza e seu poder8. O discurso dos “direitos humanos” tornou-se desculpa para justificar a busca pelo que se deseja sem qualquer consideração com os outros. Em consequência, “igualdade” tornou-se função de “desigualdade”9.
Dessa forma, ao fundamentar o desejo numa carência insaciável, ao reduzi-lo a ganância (inveja e cobiça) e ao alinhá-lo à noção de direitos adquiridos, o neoliberalismo produz uma forma de desejo que é completamente condicionada. O resultado é o inverso da noção platônica tradicional do corpo como prisão da alma. Quando o desejo é dessa forma condicionado, a alma é que torna-se a prisão do corpo10. Essa, ainda, é uma forma disciplinada de desejo que se torna radicalmente alienada. Como argumenta Zizek11:
O famoso truísmo de Jenny Holzer, “protege-me daquilo que desejo” pode ser lido como referência irônica à sabedoria convencional masculina-chauvinista que afirma que uma mulher deixada a seus próprios recursos se verá absorvida por uma fúria autodestrutiva, ou pode ser lido de modo mais radical, como apontando para o fato de que na sociedade patriarcal contemporânea o desejo da mulher é radicalmente alienado: ela deseja o que os homens esperam que ela deseje, desejos que são desejados por homens [...] “Aquilo que quero” já foi imposto sobre mim pela ordem patriarcal que me diz o que devo desejar.

Tendo coberto o desejo, resta analisar os modos pelos quais o neoliberalismo disciplina nossa imaginação. Basicamente, ele o faz empregando a retórica da independência, da segurança e da responsabilidade, a fim de mascarar o modo como condiciona nossa imaginação (individual e coletiva) através de medo e desespero.
O neoliberalismo glorifica o indivíduo autônomo e define maturidade e sucesso pela capacidade de se viver de modo independentes dso outros. Há, no entanto, uma grande dose de medo subjacente a essa apresentação. Quando a sociedade é dominada por indivíduos interessados apenas em si mesmos, restam poucas razões para uma pessoa cuidar de outra; o indivíduo é impelido em direção à independência porque, no fim das contas, não pode contar com quer que seja. Além disso, como o mundo é definido pela escassez, e como há tamanha disparidade dentro do sistema, passamos a temer o outro que irá tentar tirar aquilo que é meu e ele não tem. Diante disso o que o indivíduo faz é retrair-se e acumular bens, não apenas porque não pode contar com o outro, mas porque tem medo de perder o pouco que tem (quer por via de um desastre que leve minha casa, de um imigrante que leve o meu emprego, de um drogado que leve minha carteira ou de um terrorista que me leve a vida).
Porém, ao invés de dizer que é o medo que nos impele à independência, o discurso de “responsabilidade” é usado para justificar esse modo de vida. Conforme documentado por Max Weber e H. Tawney, associar independência econômica a responsabilidade está muito enraizado nas tradições puritanas e reformadas, e isso provê ao neoliberalismo uma fundação que vê a responsabilidade como virtuosa ao invés de fonte de temor12. Porém o que tem sido negligenciado é que o discurso da “mordomia” executa precisamente a mesma função dentro de grande parte da cristandade contemporânea. A ideia de “mordomia” provê agora os cristãos com um verniz religioso que justifica um modo de vida fundamentado no temor13. Cabe lembrar, então, as palavras de Eduardo Galeano: “O demônio do medo se disfarça a fim de nos enganar. O enganador oferece covardia como se fosse prudência e traição como se fosse realismo”14.
O outro meio pelo qual o neoliberalismo condiciona a imaginação é através do desespero. Precisamente porque nos apresenta uma teologia consumada, não nos resta esperança alguma. Não há escapatória e não há alternativa possível porque, a priori, não há alternativaimaginável. O capitalismo torna-se, assim, “o partido do desespero contrarevolucionário”.
Daniel Oudshoorn

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O que pensamos, do que temos medo, o que amamos, nossas crenças não podem evidenciar-se. Não totalmente, menos ainda de uma vez por todas. É preciso negociar o que de nós pode participar da vida pública e o que deve permanecer guardado como reserva existencial.
É possível existir verdade demais em uma alma para que ela se exponha e com isso comprometa sua sobrevivência. É preciso economizar as exibições.
O contrário é também verdadeiro. Neste jogo ambivalente, muito pouca verdade em uma alma, ou uma verdade que faz seu portador pequeno demais, reivindica grandes mentiras em um desempenho.
Verdade demais ou de menos, mas todos têm algo a escamotear. A isso chamamos de interioridade.
Aquela mulher tem envolvimentos questionáveis. Todos já sabem e ninguém toca no assunto. Não convém ir às últimas conseqüências. Talvez porque lhes sejam muito bons seus favores sexuais, ou muito útil sua candidatura iminente a próxima maldita. Ela segue sua rotina de culpa e apreensão. Qualquer dia desses o seu mundo desmorona.
Jesus faz escolhas sintomáticas. Sensível demais com quem ninguém se importa. Gente já assentada nos espaços organizados para que a vida de todos prossiga sem perturbação. Mulheres, doentes, pecadores, malditos, por eles demonstra afetos perigosos. Sua linguagem o classifica entre revolucionários. Fala de um Reino para pobres e incita à busca de justiça. Mas o que é mais grave, parece ficar à vontade demais com os proscritos, demonstra com eles sentir-se em casa. Veja como olha para essa gente. Veja como bebe, come e ri. Entre os demais mestres há uma intuição desesperada de que ele é uma ameaça, de que suas intenções são profanas. De que esconde o que a todos escandalizaria.
Fariseus e mestres da Lei, estes despendem enorme energia no jogo. Dos três, Jesus, a mulher e os guardiões da religião, estes são os mais miseráveis. Todos padecem, mas ninguém precisa tanto esconder quanto eles. Ninguém lustra com tanto rigor e piedade o que aos outros aparece. Jesus anda revoltado com o seu procedimento. Já os chamou de “sepulcros caiados”, hipócritas.
E o trágico acontece. A mulher foi flagrada. O que pode ser mais proibido no jogo da moral que se deixar flagrar? Surpreendida em condições indisfarçáveis, seu sexo condenável de tão ardente, ou seria, ardente de tão condenável, acende escrúpulos e ardis. Como são perspicazes os escandalizados. O que mais desnudaria o perigoso mestre nazareno que a nudez de uma pecadora? Pois castrar o erótico é o que mais se aproxima de reprimir a crítica.
Jesus está cercado de gente quando o ruído raivoso interrompe seus ensinamentos. Homens de passos decididos, olhares fulminantes e um trapo humano nas mãos. Na boca, o rigor da lei; já no chão, a vergonha que despiu de humanidade a mulher; em seus corações, armadilhas.
O texto frio da lei é fluente no simulacro da moral. A letra grafada e morta não vasculha corações nem pergunta por afetos, não ilumina interioridades nem chora misérias, mata. Pronuncia-se a Lei com reverência, apedreja-se pessoas, portanto, com fervor. A lei diz para apedrejar e você, o que diz? Quem está ali conclui rápido a derrocada incontornável do mestre. Não dá para driblar a tensão. E todos já sabem que escolha ele fará.
Sua resposta é uma sátira. Um deboche. Uma charge. Porque todo assunto muito sério é uma piada. Jesus curva-se em desdém à gravidade da proposição e escreve com o dedo no chão. Galhofa. Sua escrita evade o ambiente e ri da austeridade dos zeladores da moral.
Neste instante há uma superposição de cenas. Fariseus e mestres da dura escrita da Lei com cenhos franzidos, pedras nas mãos e um jogo de poder funesto na alma, encena o primeiro plano. Ausentando-se para o segundo plano, Jesus, de cócoras, lúdico, escrevendo com o dedo no chão. Sua escrita brinca e dança na areia. Insuperável escolha. Quem olha não os tem no mesmo foco. Se o rigor oportuno dos fariseus é o que amamos, a imagem satírica de Jesus embaça, quase desaparece. Se a cena despretensiosa e estética do mestre, que rabisca desenvolto no chão, é o que nos magnetiza, então os aflitos e tensos fariseus esvanecem ao fundo. O Cristo que risca trivialidades no chão faz poesia e chama de triste ficção o flagrante que mente a vida e anuncia a morte.
Mas doutrinadores entendem de emboscadas morais e tocaias linguísticas, não de escritas leves e despretensiosas. A mesma poesia que salva Jesus da sanha por doutrina e dominação é desespero para os demais. Ah, se ele pudesse ficar ao chão, rabiscando, descolado daquele mundo, desligado daquela lógica! Eles insistem na inquisição e na morte da mulher. Cristo se ergue, dedos sujos de tanto que brincou no chão, às inquirições questiona, pergunta às interrogações e flagra os flagrantes. Quem não tiver pecado atire a primeira pedra. Quem não se flagrar em segredos leve a sério a sua religião. Descobrir-se protagonista da grande piada é a pior vergonha. Um a um, todos se retiram.
Enquanto isso, Jesus mantém-se curvado e entregue aos rabiscos na areia. É assim que se escreve, com a fluidez de quem o faz sem a pretensão poderosa de se perpetuar. O resto é doutrina, é lei, é flagrante de morte. Ele dá as costas à escrita pretensiosa de ocupar o mundo, como se o mundo fosse o que aparece. Escreve no fugidio pó o traço da misericórdia. A escrita na areia que o vento leva é tão livre que torna aquele ambiente insustentável para os rígidos escribas. Apenas quem escreve conteúdos para serem esquecidos está apto a desenhar o belo e a liberdade. Apenas os riscos poéticos, espalhados no chão e que logo serão lançados pelo vento no imponderável horizonte, somente eles libertam os pecadores de seus cruéis flagrantes.
Não há mais ninguém ali, além dos dois. Estão livres, por enquanto. A mulher, do apedrejamento. Jesus, de mais uma arapuca. Mas os fariseus e mestres da lei, estes foram condenados a manterem a todo custo o falso brilho de sua aparência.
A mulher volta à vida. Jesus fica um pouco mais por ali, escrevendo na areia e saboreando, com um breve riso nos lábios, a sobrevida.
Até que em um dia desses, sua poesia se torne um crime e sua liberdade, uma cruz.

Elienai Cabral Junior