terça-feira, 8 de março de 2011

A Morte da Moralidade

A moralidade dos fariseus ainda prospera entre nós. Dentre os líderes intelectuais do nosso povo muitos sentem-se horrorizados diante da noção de que uma pessoa é capaz de fazer o que é bom apenas se sua vontade estiver direcionada à busca da verdade da forma como ela mesmo a percebe. Afirmam que, ao contrário, carecemos de mandamentos “objetivos” que nos digam exatamente o que fazer.

Se com isso eles quisessem dizer que coisas como lei, tradição e autoridade pessoal são em geral necessárias, estariam certos. A verdadeira opinião desses líderes do nosso povo, no entanto, é que obedecer a essas autoridades é em si mesmo fazer o que é bom e – pior ainda – que chegamos ao conhecimento do que é bom deduzindo-o a partir das leis impressas sobre nós pela natureza e pela história. Agindo assim esses guias cegos de cegos declaram não ter olhos para verem eles mesmos o que é bom, embora estejam cheios de honesto zelo, de uma natureza não muito diversa do zelo os fariseus, seus protótipos.

É apenas observando como Jesus vai à raiz da insinceridade e da indolência dessa concepção de moralidade que veremos claramente o significado de suas idéias morais em sua influência sobre nós mesmos.

Os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

No curso de sua incansável guerra contra o auto-engano dos homens virtuosos ao redor de si, Jesus revela que somos capazes de querer uma única coisa de cada vez. Por mais que nos esforcemos, não conseguimos servir a dois senhores. Da mesma forma que o olho deve ser “simples” para dar ao organismo a luz necessária, o homem interior estará na escuridão a não ser que concentre cada impulso seu numa única direção, na busca de um único alvo.

Será que Jesus considerou que sua missão consistia em revelar aos homens qual deveria ser esse alvo? De modo algum. Ele sabia que a essência da lei era conhecida em todo Israel, os mandamentos de amarmos a Deus e ao próximo. Sabia também que não era difícil fazer cada pessoa reconhecer quem é o seu próximo, de modo a perceber que quando está sendo cruel com o outro está condenando simultaneamente a si mesma. O objetivo de Jesus era outro, demonstrar que por nenhuma palavra externa somos capazes de chegar ao conhecimento do que é bom.

Jesus certamente viveu de maneira única a noção de Deus como expressão última de todas as coisas, como nosso único e necessário bem. Pois para ele o Reino de Deus significava apenas aquele futuro de bem-aventurança cuja condição necessária é que apenas Deus reine dentro de nós. Todas as coisas boas que não exatamente nos levam mais para perto de Deus preparam a nossa destruição. Verdadeira integridade é amor a Deus.

Porém, a partir dessas noções fundamentais a respeito da devoção os homens concluíram que nosso dever supremo é obedecer a vontade tradicional de Deus – conduta pela qual somos expostos a um perigo terrível, visto que conduz a uma forma de devoção fatal a qualquer clareza moral. Pois, dentre os mandamentos transmitidos a nós como expressão da vontade de Deus, haverá sempre em nós a tendência de considerarmos superiores aqueles que deixam claro qual seja nosso dever imediato para com Deus. Conseqüentemente, os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

Isso Jesus encontrou nos defensores da virtude ao redor de si, gente que lutava com grande cuidado a fim de desenvolver e aprimorar as regras transmitidas a eles para o serviço de Deus. Porém aos olhos de Jesus a virtude aparente desse método de servir a Deus transformava em impossibilidade um serviço vivo e vital; ele via nesse método a carcaça ao redor da qual reuniam-se os abutres.

Jesus não dará ouvidos às nossas alegações de que uma obrigação relacionada ao culto nos desobriga de suprir as necessidades de qualquer pessoa pela qual sejamos responsáveis num dado momento. Os profetas já haviam dito que misericórdia é melhor do que sacrifício, mas no tempo de Jesus do zelo dos escribas havia nascido e prosperado um religião cuja vitalidade envolvia a morte da moralidade.


Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

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