segunda-feira, 28 de março de 2011

Pecados Públicos

Alguns blogueiros "apologéticos" e defensores da moral (própria), deveriam refletir, e quem sabe se converter da sua falsa religiosidade.


Não reclamo. Apenas constato. Tem ficado cada vez mais difícil a gente se reconciliar com os erros cometidos. O motivo é simples. A vida privada acabou. O acontecimento particular passa a pertencer a todos. A internet é um recurso para que isso aconteça. Os poucos minutos noticiados não cairão no esquecimento. Há um modo de fazê-los perdurarem. Quem não viu poderá ver. Repetidas vezes. É só procurar o caminho, digitar uma palavra para a busca.

Tudo tem sido assim. A socialização da notícia é um fato novo, interessantíssimo. Possibilita a informação aos que não estavam diante da TV no momento em que foi exibida.

A internet nos oferece uma porta que nos devolve ao passado. Fico fascinado com a possibilidade de rever as aberturas dos programas do meu tempo de infância. As imagens que permaneciam vivas no inconsciente reencontram a realidade das cores, movimentos e dos sons.

Mas o que fazer quando a imagem disponível refere-se ao momento trágico da vida de uma pessoa? Indigência exposta, ferida que foi cavada pelos dedos pontiagudos da fragilidade humana? Ainda é cedo para dizer. Este novo tempo ainda balbucia suas primeiras palavras.

O certo é que a imagem eterniza o erro, o deslize. Ficará para posteridade. Estará resguardada, assim como o museu resguarda documentos que nos recordam a história do mundo.

Coisas da contemporaneidade. Os recursos tecnológicos nos permitem eternizar belezas e feiúras.

Uma fala sobre o erro. Eles nascem de nossa condição humana. Somos falíveis. É estatuto que não podemos negar. Somos insuficientes, como tão bem sugeriu o filósofo francês, Blaise Pascal. O bem que conhecemos nem sempre atinge nossas ações. Todo mundo erra. Uns mais, outros menos. Admitir os erros é questão de maturidade. Esperamos que todos o façam. É nobre assumir a verdade, esclarecer os fatos. Mais que isso. É necessário assumir as conseqüências jurídicas e morais dos erros cometidos. Não se trata de sugerir acobertamento, nem tampouco solicitar que afrouxem as regras. Quero apenas refletir sobre uma das inadequações que a vida moderna estabeleceu para a condição humana.

Tenho aprendido que o direito de colocar uma pedra sobre o erro faz parte de toda experiência de reconciliação pessoal. Virar a página, recomeçar, esquecer o peso do deslize é fundamental para que a pessoa possa ser capaz de reassumir a vida depois da queda. É como ajeitar uma peça que ficou sem encaixe. O prosseguimento requer adequação dos desajustes. E isso requer esquecer. Depois de pagar pelo erro cometido a pessoa deveria ter o direito de perder o peso da culpa. O arrependimento edifica, mas a culpa destrói.

Mas como perder o malefício do erro se a imagem perpetua no tempo o que na alma não queremos mais trazer? Nasce o impasse. O homem hoje perdoado ainda permanecerá aprisionado na imagem. A vida virtual não liberta a real, mas a coloca na perspectiva de um julgamento eterno. A morbidez do momento não se esvai da imagem. Será recordada toda vez que alguém se sentir no direito de retirar a pedra da sepultura. E assim o passado não passa, mas permanece digitalizado, pronto para reacender a dor moral que a imagem recorda.

Estamos na era dos pecados públicos. Acusadores e defensores se digladiam nos inúmeros territórios da vida virtual. Ambos a acenderem o fogo que indica o lugar onde a vítima padece. A alguns o anonimato encoraja. Gritam suas denúncias como se estivessem protegidos por uma blindagem moral. Como se também não cometessem erros. Como se estivessem em estado de absoluta coerência. No conforto de suas histórias preservadas, empunham as pedras para atacar os eleitos do momento.

O fato é que o pecador público exerce o papel de vítima expiatória social. Nele todas as iras são depositadas porque nele todas as misérias são reconhecidas. No pecado do outro nós também queremos purgar o pecado que está em nós. Em formatos diferentes, mas está. Crimes menores, maiores; não sei. Mas crimes. Deslizes diários que nos recordam que somos território da indigência. O pecador exposto na vitrine deixa de ser organismo. Em sua dignidade negada ele se transforma em mecanismo de purificação coletiva. É preciso cautela. Nossos gritos de indignação nem sempre são sinceros. Podem estar a serviço de nossos medos. Ao gritar a defesa ou a condenação podemos criar a doce e temporária sensação de que o erro é uma realidade que não nos pertence. Assumimos o direito de nos excluir da classe dos miseráveis, porque enquanto o pecador permanecer exposto em sua miséria, nós nos sentiremos protegidos.

Mas essa proteção que não protege é a mãe da hipocrisia. Dela não podemos esperar crescimento humano, nem tampouco o florescimento da misericórdia. Uma coisa é certa. Quando a misericórdia deixa de fazer parte da vida humana, tudo fica mais difícil. É a partir dela que podemos reencontrar o caminho. O erro humano só pode ser superado quando aquele que erra encontra um espaço misericordioso que o ajude a reorientar a conduta.

Nisso somos todos iguais. Acusadores e defensores. Ou há alguém entre nós que nunca tenha necessitado de ser olhado com misericórida?


Padre Fabio de Melo

Muito bom!


segunda-feira, 21 de março de 2011

O FIM DOS SERMÕES

 
Há um limite para a convivência das expectativas da multidão e a linguagem lúdica de um sonhador. Pode se manter muita gente por perto, bastante tempo, contando histórias. Respondendo com novas e escorregadias perguntas, distraindo com meias palavras, usando as mesmas figuras para indicar outras imagens. O Reino de Deus, invisível. Fermento para o bolo. Um grão de mostarda. A luz no candeeiro. O sal. Um casamento surpreendente. Outra coisa com as mesmas palavras. Parábolas que postergam os julgamentos, que iludem a ilusão (Kierkegaard).

Mas há um ponto de fervura em toda esperança adiada. Um prazo estreito para o encantamento popular, quando a violência adormecida de todos acorda. Parece que é o que está acontecendo. Ninguém pede mais sinais. Nenhuma nova pergunta é feita e sequer mais uma história é tolerada. Antes, cercado por demandas, agora, rodeado por suspeitas.

Se o apetite por poder não é saciado, aquele que a todos distraiu, de quem nunca se deixou de esperar a mais vulgar e velada satisfação, deve ser consumido nas aspirações desapontadas da turba. Se Jesus não é o Cristo que se reivindica, Barrabás.

Um ídolo não tem o direito de não ser.

Não dá para não trair alguém que tinha tudo para ser o que todos esperavam. Não dá para não repudiar aquele com quem se decepcionou nas mais doces fantasias. Não dá para não condenar aquele que não consentiu com mais uma ilusão.

Um ídolo não tem o direito de se mover.

Todo líder é constituído em um jogo erótico. E toda intriga é uma pornografia. Ninguém toca no assunto, mas todos esperam secretamente que ele seja o que ninguém consegue ser. Este é o segredo que excita os ajuntamentos. Mas, se alguém acende a luz e frustra o fetiche coletivo, retomam-se as sombras, agora para destruir. Odeia-se quem não se deixou amar com máscara. Este é o segredo que perpetua as taras para os próximos ajuntamentos.

Por isso o insinuante beijo de Judas virá. Estalará como um tapa, cheio de um estranho sadismo. A primeira e mais ardida bofetada que o Filho do homem terá recebido.

As palavras de Jesus estão gastas. O prazo se esgotou. Tudo o que diz, desde então nada fala. As multidões atraídas por ele, agora o repelem. Resta o lugar de poucos, o espaço dos amigos. Quem sabe? Jesus se faz anfitrião e põe a mesa. Oferece pão, ainda que ninguém aparente chegar à saciedade. Enche as taças, que insistem em parecer vazias. Cheios estão os corações, mas de diabos. Sente-se sozinho também em casa.

O limite das palavras é um convite para os gestos de amor.

As palavras, amordaçadas, descobrem que o amor se expressa a despeito delas. Silenciosamente, Jesus encena o último sermão antes da cruz. Despe-se da capa para ocupar o lugar discretíssimo do servo. O mestre lava os pés dos discípulos. As mãos de um Deus calado conversam com os pés trôpegos da humanidade.

Nunca se olhou tanto para baixo como no dia em que Deus ficou de cócoras. Quem quisesse olhar para o céu a procura de Deus teria que vê-lo refletido nas águas turvas da bacia sobre o chão. E os pés sujos e vacilantes da humanidade, finalmente, imersos no céu gracioso de Deus.

Por um instante, vendo-o prostrado, alguém entre os discípulos, muito constrangido, se lembrou do que ouviu do próprio Jesus. Que um diabo, em um deserto, tentou fazê-lo se prostrar por poder e fama e ele recusou. Assustado, chegou a pensar: não se prostrou diante da fama para ser ouvido, mas se curvou diante de pessoas para amar… E teve medo do futuro. Do que teria que fazer com todos os seus planos.



Elienai Cabral Junior

O desenho e seu nome


Antes que uma pessoa nasça, Deus pega o pincel com o qual desenhou o mundo e derrama sobre o peito da pessoa, que é ainda uma página em branco, um número indeterminado de pingos aleatórios de tinta. Assim, cada pessoa que nasce traz no peito uma figura arbitrária, sempre diferente em cada indivíduo, um desenho dado por Deus mas não interpretado por ele.

No decorrer dos seis primeiros anos de vida, a partir do que sente, do que experimenta e do que entende do mundo, cada pessoa decide o que vê no misterioso desenho traçado no seu próprio peito, dando assim um nome ao que não tinha nome. Essa interpretação – independentemente do desenho em si – será o seu mito pessoal, a chave essencial que irá defini-lo como indivíduo e guiar sua história por toda a sua vida.

Quando desperta da infância a pessoa já esqueceu tanto o desenho quanto sua interpretação, e perdeu o acesso direto ao seu mito pessoal. Embora seja constantemente conduzida por ele, a pessoa recebe do seu mito apenas sinais confusos e repletos de ruído, que assombram-na em sonhos tanto no sono quanto na vigília.

A primeira tarefa no caminho rumo à maturidade é redescobrir o seu mito pessoal, isto é, recuperar o acesso à interpretação que cada um deu na infância ao desenho gravado no seu próprio peito. A pessoa descobrirá assim de que história faz parte, qual é seu papel nesta história e como mudá-lo ou apropriar-se dele. Esta é a chave que abre a porta do inconsciente, e feliz de quem vence o seu próprio mito e apropria-se do rumo da sua história; quem reconcilia-se com o mito livrando-se dele, antes de abraçá-lo. Este nasceu de novo e receberá a pedrinha branca, símbolo da individuação que ousou empreender, e na pedrinha estará gravado o desenho que já esteve gravado no seu peito, o desenho que é uma interpretação e também uma palavra e também um nome, e que Deus não ousou proferir antes de você.


Paulo Brabo

quarta-feira, 16 de março de 2011

POR QUE OS EVANGÉLICOS SÃO TÃO CRENTES, MAS TÃO FEIOS?

De tudo o que venho dizendo o que mais ofende aos meus irmãos evangélicos é o que digo com poesia. Quando moleque, ainda tão marcado pelo jeitão carioca, gostava de brincar com as pessoas que não entendiam a ironia. Fazia uma brincadeira, mas os sisudos entendiam tal e qual e se apavoravam, ou se irritavam e partiam logo para uma solução séria ou uma advertência. Percebia a surdez poética e divertia-me sadicamente com as ironias até o limite da paciência. Era o que na época chamávamos de “tirar uma casquinha”, uma molecagem.

A ironia é uma das tantas variações da mesma desistência, a da capacidade de expressar sentidos com as palavras ao pé-da-letra. Mas não uma desistência azeda, o que seria um silêncio lúgubre ou um queixume ranzinza, mas uma desistência bem humorada, leve e despretensiosa. A desistência dos poetas. Daqueles que preferem abrir mão do rigor da comunicação para não terem que ficar sem o prazer da comunhão. Já que nunca consigo traduzir tudo o que sinto e penso em palavras descritivas, divirto-me com as aproximações das metáforas. Modestas, mas cheias de beleza. Tão sugestivas, insinuantes e provocativas. Às vezes, os poetas exageram de tão felizes e se satisfazem apenas com o som das palavras, não dizem quase nada, mas tocam em quase tudo. Tão viçosas e livres dos caixotes semânticos.

Vejo Jesus nos evangelhos com esse comportamento poético. Divertindo-se um pouco com a dificuldade de ser compreendido. Por alguma razão que os evangelhos não explicam, mas que o nosso breve olhar suspeita, Simão é apelidado por Jesus de pedra, Pedro. Quando ele demonstra ter alcançado o que era dito, Jesus se diverte com o trocadilho: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja.” Mas quando se atrapalha com os sentidos, nosso falastrão experimenta o mesmo trocadilho às avessas: “Pedro, tu és para mim pedra de tropeço.” Quase vejo Jesus com um riso indisfarçável no cantinho da boca.

E que dizer das parábolas? Nem um pouco ingênuas. Insinuantes e provocativas. Apenas assimiladas pelos que tentassem ler as entrelinhas. Em um mundo em que a religião é instrumento de exclusão, mormente étnica, onde os samaritanos são odiados por sua atrevida proximidade religiosa e cultural, Jesus conta uma história com cara de ‘sem-querer’ para exemplificar o verdadeiro amor. É a parábola que aprendemos a chamar de O Bom Samaritano. Seu exemplo de desamor são os líderes da religião dos judeus, o levita e o sacerdote. Mas ocupa a cátedra da misericórdia um réprobo samaritano. Em outra, a que chamamos de O Fariseu e o Publicano, para mostrar o valor da oração, Jesus expõe ao ridículo a arrogância legalista dos fariseus e exalta os deploráveis publicanos, tão convictos de sua miséria quanto agraciados por Deus. Jesus fala uma linguagem apimentada.

Todos os escandalizados com o meu livro Salvos da Perfeição, sem exceção, tiveram dificuldades com a linguagem poética. Para eles mito é mentira. Ironia é profanação. Insinuação é atitude suspeita. Metáforas são antropomorfismos. Narrativa é linguagem escorregadia. Estética é leviandade. Poesia é heresia. E teologia é ler a Bíblia ao pé-da-letra. Assusto-me como eles reagem com zanga e agressividade. Lêem-me como investigadores policialescos. Seus esforços se parecem com uma tentativa de amordaçamento intelectual. Mas o que me assusta é que justamente na poesia é que se transformam em meus oponentes. Onde deveria haver deleite e deslumbramento, experiências com o belo, há apenas escrúpulo e estranhamento, experiências com o feio. Penso que não sabem lidar com a beleza e a descontração.

Pergunto-me por que nossos cultos não tem os cheiros nem os paladares tão criativamente espalhados por Deus para aventura de viver. Por que nossos templos são descoloridos e preferimos os cartazes de propaganda e as frases de admoestação aos quadros e esculturas dos artistas? Por que nossas músicas são, com freqüência, tão piegas e repletas de frases repetitivas e sem criatividade? Por que nossos sermões são mais bem considerados na medida de seus moralismos e advertências austeras? E nossas liturgias são tão previsíveis? Nossa indumentária, austera? Sugerem uma gente com medo das sensações, desconfiada de tudo o que não termine em conclusões de ordenança moral e afirmações peremptórias. Por que nossas festas são reduzidas à comilança? Sem dança e descontração, sentamo-nos ao redor de mesas para nos ocuparmos do único prazer que nos resta, comer.

Há muitas explicações possíveis. Em algum momento e por alguma razão que não me cabe agora, acatamos a idéia castradora de que nossos prazeres são desprazeres para Deus. Nosso mundo, concluímos, um lugar perigoso e disposto para nos prejudicar e condenar ao inferno eterno. Nele, temos que nos portar com a mesma tensão dos guardas noturnos em ruas perigosas. Descontrair é abrir brechas para entrada destrutiva de imaginários inimigos. O rigor paranóico enfeia nossos crentes.

Mas desconfio de uma razão anterior. Nossa leitura da Bíblia. Ela é bem mais que a leitura de um texto sagrado, ou um manual religioso. É um modo de ler a vida. Reduzimos o mundo ao que está escrito na Bíblia. Nada existe distintamente do que está previsto na revelação do texto sagrado. Daí o esforço hercúleo de fazer caber a nossa vida nas páginas canonizadas. Algo semelhante ao que faziam os chineses com os pés de suas mulheres. Uma antiga tradição chinesa dizia que as mulheres na China deviam ter pés pequenos, e para isso quando as mulheres eram crianças os seus dedos dos pés eram quebrados, pois assim as mulheres sem os pés cobertos não podiam percorrer grandes distâncias, não podendo fugir de casa. O reducionismo biblista dos evangélicos pratica culturalmente a mesma violência.

No entanto, ainda mais decisivo na leitura evangélica da Bíblia não é a pretensão de encaixar nela nossas vidas, mas de tratá-la com o mesmo rigor cientificista dos tratados acadêmicos. Desejando para os argumentos da nossa fé a mesma reverência dada às ciências naturais, tratamos de conferir a tudo o que dizemos a correspondência rigorosa e fiel com uma pretensa verdade. Sendo assim fomos treinados a ler tudo literalmente. Ficamos sem a ginga poética. Um crente fundamentalista lendo a poesia tão presente na Bíblia é como um lutador de Sumô tentando jogar capoeira.

Dar ao texto bíblico este estatuto de supertexto inibe qualquer relação mais espontânea e descontraída. Como devem ser a oração e a meditação. Uma Bíblia assim é uma castração existencial para os devotos. Mas nem creio que Deus compartilhe esta crença nem entendo que a Bíblia deva ser lida assim.

A Bíblia dos exegetas e seus métodos com pretensão científica é um corpo morto e inerte e sua exegese, uma exumação. A Bíblia dos que a lêem literalmente é semelhante à comida sem cheiro e cor e sua leitura é uma desleitura.

Prefiro ler a Bíblia como foi sugerido a João fazer com a revelação trazida pelo anjo. Parar de escrever e comer. A revelação nunca se dá plenamente na escrita. Ela precisa ser incorporada. Necessita transformar-se em algo mais que as palavras imediatas, ao pé-da-letra. Deve tornar-se a vida do João. Como o pão vira corpo vivo. Mas a descoberta atordoante de João nem foi o gigantesco anjo, nem os conteúdos da revelação, mas seu gosto agridoce. Doce na boca e amargo no estômago. Sua experiência mais apocalíptica foi a sápida. A revelação é cheia de sabor.

Esta Bíblia é a libertação da metáfora e da beleza. Para pessoas que além de crentes querem ser felizes e bonitas.


Elienai Cabral Jr.

terça-feira, 8 de março de 2011

A Morte da Moralidade

A moralidade dos fariseus ainda prospera entre nós. Dentre os líderes intelectuais do nosso povo muitos sentem-se horrorizados diante da noção de que uma pessoa é capaz de fazer o que é bom apenas se sua vontade estiver direcionada à busca da verdade da forma como ela mesmo a percebe. Afirmam que, ao contrário, carecemos de mandamentos “objetivos” que nos digam exatamente o que fazer.

Se com isso eles quisessem dizer que coisas como lei, tradição e autoridade pessoal são em geral necessárias, estariam certos. A verdadeira opinião desses líderes do nosso povo, no entanto, é que obedecer a essas autoridades é em si mesmo fazer o que é bom e – pior ainda – que chegamos ao conhecimento do que é bom deduzindo-o a partir das leis impressas sobre nós pela natureza e pela história. Agindo assim esses guias cegos de cegos declaram não ter olhos para verem eles mesmos o que é bom, embora estejam cheios de honesto zelo, de uma natureza não muito diversa do zelo os fariseus, seus protótipos.

É apenas observando como Jesus vai à raiz da insinceridade e da indolência dessa concepção de moralidade que veremos claramente o significado de suas idéias morais em sua influência sobre nós mesmos.

Os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

No curso de sua incansável guerra contra o auto-engano dos homens virtuosos ao redor de si, Jesus revela que somos capazes de querer uma única coisa de cada vez. Por mais que nos esforcemos, não conseguimos servir a dois senhores. Da mesma forma que o olho deve ser “simples” para dar ao organismo a luz necessária, o homem interior estará na escuridão a não ser que concentre cada impulso seu numa única direção, na busca de um único alvo.

Será que Jesus considerou que sua missão consistia em revelar aos homens qual deveria ser esse alvo? De modo algum. Ele sabia que a essência da lei era conhecida em todo Israel, os mandamentos de amarmos a Deus e ao próximo. Sabia também que não era difícil fazer cada pessoa reconhecer quem é o seu próximo, de modo a perceber que quando está sendo cruel com o outro está condenando simultaneamente a si mesma. O objetivo de Jesus era outro, demonstrar que por nenhuma palavra externa somos capazes de chegar ao conhecimento do que é bom.

Jesus certamente viveu de maneira única a noção de Deus como expressão última de todas as coisas, como nosso único e necessário bem. Pois para ele o Reino de Deus significava apenas aquele futuro de bem-aventurança cuja condição necessária é que apenas Deus reine dentro de nós. Todas as coisas boas que não exatamente nos levam mais para perto de Deus preparam a nossa destruição. Verdadeira integridade é amor a Deus.

Porém, a partir dessas noções fundamentais a respeito da devoção os homens concluíram que nosso dever supremo é obedecer a vontade tradicional de Deus – conduta pela qual somos expostos a um perigo terrível, visto que conduz a uma forma de devoção fatal a qualquer clareza moral. Pois, dentre os mandamentos transmitidos a nós como expressão da vontade de Deus, haverá sempre em nós a tendência de considerarmos superiores aqueles que deixam claro qual seja nosso dever imediato para com Deus. Conseqüentemente, os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

Isso Jesus encontrou nos defensores da virtude ao redor de si, gente que lutava com grande cuidado a fim de desenvolver e aprimorar as regras transmitidas a eles para o serviço de Deus. Porém aos olhos de Jesus a virtude aparente desse método de servir a Deus transformava em impossibilidade um serviço vivo e vital; ele via nesse método a carcaça ao redor da qual reuniam-se os abutres.

Jesus não dará ouvidos às nossas alegações de que uma obrigação relacionada ao culto nos desobriga de suprir as necessidades de qualquer pessoa pela qual sejamos responsáveis num dado momento. Os profetas já haviam dito que misericórdia é melhor do que sacrifício, mas no tempo de Jesus do zelo dos escribas havia nascido e prosperado um religião cuja vitalidade envolvia a morte da moralidade.


Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)