domingo, 27 de junho de 2010

Sobre mentiras e verdades






Cansei de varrer angústias para debaixo dos chavões. Não me importo de ser taxado de herege e que alguns divulguem que estou me desviando da fé evangélica. Não me incomoda mais o julgamento impiedoso e implacável dos que sobrevivem de certezas. Não estou mais disposto a repetir velhas fórmulas que não me fazem sentido nem oferecem abrigo para as almas amarrotadas pela dor. Não suporto mais a solidariedade das palavras vazias dos clichês religiosos e da teologia mais ocupada em defender a Deus do que em amar o próximo.

Não temo o caminho. A noite escura do silêncio e das dúvidas da alma não me apavora mais do que a infertilidade dos dogmas do dia claro. Tenho certeza de que minha trilha é percurso de vida. E tenho boas razões para crer assim.

Ando sobre as pegadas dos questionadores, dos inquietos, dos rebeldes, dos que não encontram descanso, sem qualquer temor de me perder no labirinto da complexidade da razão e dos descaminhos do coração, que “têm razões que a própria razão desconhece”.

O que não quero é ser contado entre os cínicos. Não me admito mais seguindo na fila indiana dos covardes. Jamais aceitarei a possibilidade da hipocrisia. Prefiro a verdade, a minha verdade, ainda que minha verdade seja mentira, pois mais vale apostar no que é verdade para a consciência, ainda que seja mentira, do que numa verdade estranha à consciência. A consciência vale mais que a verdade, pois somente na verdade relativa da consciência a verdade verdadeira poderá se impor sobre a mentira.

Caminho sem qualquer receio entre as verdades e mentiras das consciências humanas – a minha e a de todos os caminhantes. A Verdade em que creio não é uma idéia, é uma pessoa. Não tomo como definitivas as verdades das consciências, já que descanso na Verdade que é uma pessoa.

Minhas vísceras clamam pelo encontro com a pessoa que é a Verdade, e justamente por esta razão não posso conviver com quaisquer verdades que sejam estranhas à minha consciência. Relacionamentos não se baseiam em verdades, mas em integridade, autenticidade, transparência, sinceridade, mútua confiança. Prefiro estar errado sendo íntegro do que certo sendo falso. Você deve suspeitar que eu esteja enganado ou equivocado, mas pode acreditar que estou sendo honesto. Não me importo em descobrir que minha verdade é uma mentira. Mas jamais me relacionaria com você baseado em algo que para mim seja mentira somente porque para você é verdade.

Caso se importe, fique tranqüilo comigo. Creio na graça de Deus, que me interpela e me encontra. Creio no Espírito Santo de Deus, que me conduz a toda a verdade. Creio em Jesus, caminho, verdade e vida. Creio que sou amado pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo com amor maior do que eu tenho por mim mesmo. Creio que o Deus Triuno me levará à luz da verdade verdadeira, desmascarando minhas mentiras. E creio que o caminho mais curto para a verdade verdadeira é a admissão de minhas verdades relativas. Antes de me levar à verdade verdadeira, certamente Deus me levará às minhas verdades relativas, quer para que sejam desmascaradas e se revelem mentira, quer para me revelar que não eram tão mentirosas assim.

Romanos 12.2
2Coríntios 13.8
Hebreus 4.12

Ed René Kivitz

AOS CRENTES MÁGICOS...






Uma das coisas que sempre me impressionaram na natureza humana é a nossa capacidade de criar qualquer realidade que desejemos; e, a seguir, projetá-la em alguém, em alguma coisa, em algum lugar ou indivíduo; ou ainda sobre uma instituição, seja ela de qual natureza for... — Para, então, entregarmo-nos à fantasia... Como se aquilo fosse a coisa mais real e genuína possível; até que depois de um tempo..., ao verificar que espinheiros não dão uva, saímos chorando, chocados, lamuriando contra Deus e a existência, sentindo-nos enganados; e tudo porque espinheiros dão espinhos e videiras dão uva, embora nós tenhamos teimado em plantar uma natureza e esperando ceifar a outra...

Assim, relembrando que espinheiros não dão uvas, digo:

Toda mentira adoece o mentiroso, e inicia nele uma doença na mente; a doença da fantasia armada e destrutiva; além de que faz dele um ser mau caráter, pois, toda falsificação da realidade é a própria criação do diabo no interior do inventor, do mentiroso...

Não existe boa traição. Toda traição é traição, ainda que seja do policial ao bandido; e a sua consequência é que todo traidor fica pior do que qualquer traído, por pior que ele seja; e mais: quanto melhor for o traído, pior ficará o traidor...

Não existe pai e mãe que mereçam ser desonrados. Quem desonra pai e mãe deflagra o mecanismo de autodestruição no ser... Por isto ele não será longevo na alma...

Não existe o lúcido adorador de ídolos... Quem adora a um ídolo fica sempre menor do que ele, até que nele se dissolva...

Ninguém cuja profissão existencial seja perseguir acabará a vida doce...

Quem dissimula com habilidade se torna o diabo de si mesmo para sempre...

Quem dá falso testemunho cria para si mesmo aquilo que falsamente testemunhou...

Todo aquele que julga e decide o destino de alguém, cria para si mesmo o padrão pelo qual Deus o julgará...

Quem entrega os tesouros de sua alma a alguém que não seja confiável, será devorado pelo suíno que receber tais preciosidades como dádivas de um insensato...

Quem não serve copos de água ao sedento jamais beberá da fonte da água da vida...

Quem nada dá a ninguém, esse nunca terá o que seja Graça de Deus...

Quem ama a morte é filho do inferno...

Quem odeia é sócio do diabo na destruição da vida; e com ele compartilhará o mesmo destino...

Quem trama o mal ficará louco e paranóico, e morrerá de suas próprias armadilhas...

Todo aquele que inveja se torna o mais feio dos homens...

O arrogante é o coveiro de sua própria sepultura...

O sedutor vira lesma gosmenta na alma... E ele mesmo morrerá sem se suportar...

Todo aquele que vive para esconder um dia não mais saberá o caminho de volta de seu próprio labirinto de enganos e ocultamentos...

Assim é a vida...

E não há oração, unção, mágica ou poder algum que possam mudar a natureza de tais coisas!

Bem-aventurado o que crê na verdade da realidade e na realidade da verdade!

O que passar disso..., é tentativa de fazer mágica na existência!...



Nele, que nunca nos mandou praticar mágica, pois Ele não acredita em mágica,

Caio

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Fraqueza de Deus


Boa parte do ateísmo contemporâneo baseia-se na objeção enunciada com muita força no passado por J. P. Sartre e retomada pelos seus discípulos: “Se Deus existe, eu não sou nada”.

Se existe um Deus onipotente, o que ainda sobra para mim?
Essa presença ao meu lado do poder absoluto torna irrisórias todas as minhas ações. Diante do infinito, todo o finito torna-se irrelevante.
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Há muitas maneiras de enunciar o argumento.

A objeção foi formulada desde a Idade Média, mas não conseguiu convencer. A resposta diz que Deus e o homem não se situam no mesmo plano, como duas liberdades em competição.

A resposta não convenceu porque durante séculos os teólogos debateram a questão da predestinação, isto é, da compatibilidade entre a liberdade de Deus todo-poderoso e a liberdade humana.

Assim fazendo, situaram no mesmo plano as duas liberdades. Se os teólogos – tomistas, dominicanos e jesuítas – tomaram essa posição durantes séculos, não é estranho que filósofos façam a mesma coisa. De qualquer maneira, a pessoa sente tantas vezes o conflito entre a
sua vontade, o seu desejo e o que diz que é a vontade de Deus, que a reação parece inevitável. Os sartreanos sustentam que, para ser livre, é necessário negar a existência de Deus. Infelizmente para eles, Deus não depende das negações ou das afirmações de Sartre.

A verdadeira resposta está na fraqueza de Deus. O nosso Deus é um Deus “escondido” – tema constante da tradição espiritual cristã.

É um Deus que se manifesta no meio da nuvem, que se faz
perceptível, mas não impõe a sua presença.

A liberdade consiste justamente nisto: diante do outro, a pessoa para, reconhece e aceita que exista. Abre espaço, acolhe. Longe de dominar, escuta e permite que o outro fale primeiro. Assim Deus suspende o poder de Deus.

Nenhuma evidência, nenhuma ameaça, nenhum constrangimento força nem obriga. Deus permite e deixa fazer. Deus respeita o outro na sua alteridade e permite, até mesmo, que o outro se destrua sem intervir. A liberdade de Deus consiste em permitir e ajudar a liberdade do menor dos seres humanos. A liberdade de Deus reprime o poder. Torna-se fraca para que possa manifestar-se a força humana.

O hino de Filipenses 2.6-11, núcleo da cristologia paulina, expressa essa fraqueza de Deus. Pois o aniquilamento de Jesus incluía o aniquilamento do Pai: "Esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de escravo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se a foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl 2.7-8).

Deus escondeu o seu poder até a ponto de as autoridades de Israel não o reconhecerem. É desta maneira que Deus se dirige às pessoas: sem intimidação, sem poder, na dependência de seres humanos, entregando a própria vida nas mãos de criminosos. Quem dirá que dessa maneira Deus faz violência às pessoas?

Como comentou Levinas, o outro é o desafio da liberdade, a provocação que a desperta. Diante do outro há duas atitudes: examiná-lo para ver em que lê me poderia ser útil ou qual é a ameaça que representa para mim, ou então, perguntar-me o que eu poderia fazer para ajudá-lo.

A liberdade de Deus autolimita-se. Diante da sua criatura, Deus limita sua presença. Deus preferiu antes deixar que crucificassem o seu Filho a intervir para impedir tal justiça.Trata-se de fraqueza voluntária.

É verdade que durante muitos séculos, sobretudo na pregação popular, os pregadores apresentaram uma concepção bem diferente de Deus. Usaram temas e comportamentos da religião popular tradicional: medo diante do trovão, medo da seca e de cataclismos naturais – entendidos como castigos divinos –, medo das doenças recebidas também como castigos e assim por diante.

Era fácil despertar o temor a partir de idéias puramente pagãs ou supersticiosas. Essa pregação de terrorismo religioso podia dar resultados imediatos, levando milhares de pessoas aos sacramentos. A longo prazo, porém, destruíram as bases da credibilidade da Igreja. Hoje a maioria das pessoas deixaram de ter medo do trovão, não sendo mais motivo para temer a Deus, como foi no passado. Naquele tempo achou-se válido o método do temor, todavia hoje recolhe-se
os frutos dessa pastoral.

Pensou-se que os povos precisassem temer um Deus forte – e desprezariam um Deus fraco. Tais erros se pagam cedo ou tarde. Estamos pagando hoje esse preço.

Deus torna-se fraco porque ama. Quem mais ama é sempre mais fraco. Não será essa a grande característica das mulheres? Quase sempre amam mais, e, por isso, sofrem mais. Porém, nessa fraqueza consentida não estará a maior liberdade?

Nessa fraqueza a pessoa vence todo o egoísmo, todo o desejo de prevalecer, toda a preguiça de aceitar maiores desafios. Exige mais de si própria, vai mais longe, além das suas forças. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (João 15.13). Aí está também a expressão suprema da liberdade.

A fraqueza de Deus vai até a ponto de se tornar suplicante. O versículo predileto do saudoso teólogo latino-americano Juan Luís Segundo diz; “Eis que estou batendo na porta: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele
comigo (Apocalipse 3.20).

Deus bate na porta e aguarda. Se não é atendido, afasta-se e continua o caminho. Somente entra se é convidado. Depende do convite da pessoa. Deus torna-se pedinte, suplicante.


José Comblin

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Como perder Jesus de vista no livro de Atos




Tente por um instante imaginar um mundo (e um cristianismo) em que o Novo Testamento consista exclusivamente nos quatro evangelhos – sua Bíblia e sua memória desconhecem os livros de Atos, Hebreus e Apocalipse e as cartas de Paulo, Pedro, Judas e João. Neste mundo imaginário conhecemos bastante sobre a vida, o caráter, os milagres e as palavras de Jesus de Nazaré. Sabemos com quem ele andava, quem o hostilizava, a quem ele distribuía tolerância e quem merecia sua impaciência. Ouvimos suas histórias, memorizamos seus ditados, trememos diante de suas exigências e somos continuamente desafiados pela sua vitalidade. Vemo-lo lavar os pés dos discípulos, comer com pecadores, abraçar leprosos, ter os pés massageados por prostitutas. Testemunhamos sua espiral voluntária em direção à morte e temos desconcertante indício de sua ressurreição.

Mas é só. Nada sabemos das aventuras de capa e espada de Atos, das austeras recomendações de Judas, das elaboradas explicações de Paulo, do novo céu de glória e da nova terra sem templo do Apocalipse.

A pergunta que faço, e que um número cada vez maior de cristãos se têm visto impelida a fazer, é: será possível ser cristão tomando o Jesus dos evangelhos – o Jesus de Nazaré narrado, morto e ressuscitado no testemunho dos evangelistas – por inteiramente suficiente? Será possível ser cristão (e ser igreja, seja lá o que isso for) sem abraçar necessariamente a teologia de Paulo e a administração eclesiástica de Atos?

Se sentimo-nos forçado a pensar assim é devido a uma convicção crescente, vertida gota a gota das mais inesperadas fontes, de que em dois mil anos de história o cristianismo têm, essencialmente, supervalorizado Paulo em detrimento de Jesus. Muitos de nós estamos familiarizados com a tese, popular em determinados círculos, de que Paulo propôs um cristianismo institucional que tem pouca relação com a vida e a originalidade de Jesus de Nazaré. Segundo essa teoria, o Apóstolo teria contribuído mais do que ninguém para desvirtuar o cristianismo simples e anárquico de Jesus, transformando-o em instituição e abrindo precedente para que nos milênios que se seguiram o cristianismo fosse mais conhecido por sua obsessão com a crença correta do que por sua pureza de coração; mais conhecido por sua mania em ter o primeiro lugar do que, como sonhara Jesus, em ser reconhecido pelo amor.

Paulo foi mal entendido; Jesus não foi sequer levado em conta.

Será verdade que Paulo construiu e por fim consagrou a imagem de um Jesus descarnado, glorioso mas distante da vida real, em tudo contradizendo o Jesus de carne e osso, vivo e vital, dos evangelhos? Minha posição mais ou menos estabelecida sobre o assunto é que, na história do cristianismo, Paulo foi mal entendido e Jesus de Nazaré não foi sequer levado em conta. As reflexões do Apóstolo foram moldadas à imagem de seus intérpretes e por fim cristalizadas em dogma, enquanto os desafios de Jesus permaneciam – e permanecem – virtualmente intocados, virtualmente inéditos.

Cresce em mim, além disso, a impressão de que a institucionalização e conseqüente mumificação do cristianismo histórico deve-se menos a uma interpretação [possivelmente equivocada] de Paulo do que à leitura tradicional que os cristãos imprimiram, desde provavelmente o segundo século, ao livro de Atos dos Apóstolos. Se é que acabamos, por assim dizer, perdendo Jesus de vista, isso aconteceu em algum momento da nossa leitura de Atos.

Por um lado, não deve ser à toa que levamos Atos tão a sério em nossa busca por orientação. Não temos, afinal de contas, registro mais importante da transição entre a vida terrena de Jesus e o que veio depois; entre o treinamento intensivo dos discípulos e a aplicação desse ensino na vida real; entre a ordem de fazer discípulos em todo o mundo e seu eventual cumprimento; entre o sonho messiânico de transformar o mundo e sua possível execução.

Se a postura e a mensagem do Jesus dos evangelhos são por um lado prescientemente pós-modernos e contracultura, os apuros dos apóstolos em Atos parecem estar muito mais próximos do que convencionamos associar à experiência e à essência da igreja. Nos evangelhos pode até parecer que Jesus demole as bases institucionais da religião, mas poucas páginas Novo Testamento adentro vemos Paulo fundando igrejas, apontando líderes, pregando de porta em porta e passando a sacolinha. E é em Atos e não nos evangelhos, dizem-me, que vemos o retrato da igreja e a prescrição do cristianismo como deveriam ser – então, Brabo, aguente o tranco.

A pergunta que quero me forçar a fazer é se existe em Atos algum traço do Jesus indomável que vejo com tanta clareza nos Evangelhos; e, caso exista, se será possível rastreá-lo, tanto tempo depois, no relato sinfônico das façanhas dos apóstolos. Haverá em Atos algo que faça jus ao rabi que curava no sábado e semeava bem-aventuranças e maravilhava dos pássaros e abraçava criancinhas e calava diante de reis?

O que torna essa pergunta e sua resposta ainda mais relevantes está na curiosa circunstância de que o autor do livro de Atos é quase certamente Lucas, autor de um dos evangelhos, e que ele mesmo parece ter visto um relato como continuação inevitável do outro. No primeiro verso do primeiro capítulo de seu livro o autor faz a famosa referência a um tratado anterior (o evangelho de Lucas), no qual relatara “as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar”. A implicação, naturalmente, é que os evangelhos registram apenas uma porção, a primeira, das atividades de Jesus na terra; o livro de Atos fica implícito, consiste na parte II: aquilo que Jesus continuou a fazer e a ensinar através de seus discípulos.

A posição oficial do próprio Lucas, portanto, é que existe apenas continuidade entre a vida e o exemplo de Jesus de Nazaré (como registrados nos evangelhos) e os primeiros passos do cristianismo (como registrados em Atos). Não apenas uma única história e uma única linha narrativa, mas um único protagonista, que liga sem interrupção a parábola do bom samaritano ao discurso de Paulo em Atenas.

Deve ser, então, possível rastrear Jesus de Nazaré no livro de Atos; no mínimo, não deve ser impossível tentar determinar de que forma ou sob qual disfarce, na opinião de Lucas, o Filho do Homem, o rabi da Galiléia, prosseguiu agindo e ensinando através dos discípulos que preparou.

Prevejo que não será tarefa fácil. Em primeiro lugar porque, dois mil anos depois, é por certo impossível ler um livro da Bíblia de forma isenta, inteiramente livre do peso de milênios de história e de interpretação. Cada verso, cada inflexão, cada dúvida e cada aresta foram devidamente explicados, desbastados e passados a ferro pela multidão de intérpretes que nos precederam. Mesmo quando tomo a decisão consciente de aproximar-me do texto sem qualquer preconceito, descubro que o preconceito faz parte de mim mesmo, é componente inseparável da minha própria capacidade de julgamento. A consagração do texto anulou-o; sua notoriedade esgotou-o todo significado, e não há palavra que possa livrar-me do corpo desta morte.

Em segundo lugar, há que se enfrentar o fato cru de que há em Atos pouquíssimas referências, em menção ou imitação, às atividades e palavras do rabi de Nazaré.

Muito já se falou sobre a ausência do Jesus histórico nas cartas de Paulo. Já foi observado que, se dependêssemos do testemunho de Paulo, não teríamos como saber que Jesus nasceu de uma virgem, ensinava através de parábolas e era companheiro de pecadores.

Paulo não menciona sequer uma frase de Jesus, um milagre, um evento importante que não seja sua morte e ressurreição.

Preciso confessar que essa ausência do maltrapilho de Nazaré me incomoda mais em Atos do que em Paulo. As cartas de Paulo são – como o nome diz – cartas, escritas todas elas com o intuito de abordar questões muito específicas diante de grupos muito específicos. Nenhuma delas foi escrita com a finalidade de apresentar a pessoa de Jesus ou a sua história para quem não o conhecesse ou nunca tivesse ouvido falar dele. Essa circunstância, por si só, deveria servir para explicar em grande parte a ausência de referências diretas à história e ao ensino de Jesus. Essas coisas, o apóstolo poderia pressupor, estavam sendo devidamente transmitidas em outro lugar; apresentar Jesus não é, definitivamente, o que o leva a escrever.

Em Atos, por outro lado, a coisa deveria ser diferente. Vemos aqui, em grande parte, Jesus sendo proposto e apresentado a gente que nunca ouviu falar dele – ou, em alguns casos, a gente que tinha dele informações duvidosas e pouco positivas. E, surpreendentemente, em nenhum lugar – em ato nenhum de nenhum apóstolo – encontramos referência às palavras, às histórias e ao modo de vida do Jesus dos evangelhos. Pedro jamais diz “sabem, fui discípulo de um rabi na Galiléia, um homem absolutamente notável que descobri mais tarde ser o messias. Estávamos um dia no meu barquinho quando ele contou uma parábola que nunca vou esquecer…”

Nada. Nem uma palavra. Nenhuma menção a Jesus de Nazaré que não seja com respeito à sua morte, sua ressurreição, ao fato de que tinha discípulos ou à promessa do Espírito Santo. Se Lucas não perdeu Jesus de vista quando escreveu seu segundo tratado, se os discípulos não perderam Jesus de vista quando se embriagaram com o Espírito Santo, se Paulo não perdeu Jesus de vista quando foi cegado pelo esplendor de Damasco; bem, o mesmo não pode ser dito de mim. Preciso saber se ele continua mesmo ali.
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Paulo Brabo

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Interpretando a Bíblia, Mas Olhando a Realidade


‘Interpretar a Bíblia sem olhar a realidade da vida é o mesmo que manter o sal fora da comida, a semente fora da terra, a luz debaixo da mesa; é como galho sem tronco, olhos sem cabeça, rio sem leito...

Pois a Bíblia não é o primeiro livro que Deus escreveu para nós, nem o mais importante. O primeiro livro é a Natureza, criada pela Palavra de Deus; são os fatos, os acontecimentos, a história, tudo o que existe e acontece na vida do povo; é a realidade que nos envolve. Deus quer comunicar-se conosco através da vida que simplesmente vivemos. Por meio dela, Ele nos transmite a sua mensagem de Amor e Justiça.

Mas, nós homens e mulheres de hoje, por causa dos nossos pecados de estimação, organizamos o mundo de tal maneira e criamos uma sociedade tão torta que já não é mais possível perceber claramente a Voz de Deus nesta vida que então vivemos. Por isso Deus escreveu para nós um segundo livro que é a Bíblia. O segundo livro não veio substituir o primeiro. A Bíblia não veio ocupar o lugar da vida. A Bíblia foi escrita para nos ajudar a entender melhor o sentido da vida e perceber a presença da Palavra de Deus dentro da nossa realidade.

Por isso, quem lê e estuda a Bíblia, mas não olha a realidade do nosso povo oprimido nem luta pela justiça e pela fraternidade é infiel à própria Palavra de Deus e não imita Jesus Cristo. Ele é semelhante aos fariseus que conheciam a Bíblia de cor, mas não a praticavam...’
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Carlos Mestres