Tente por um instante imaginar um mundo (e um cristianismo) em que o Novo Testamento consista exclusivamente nos quatro evangelhos – sua Bíblia e sua memória desconhecem os livros de Atos, Hebreus e Apocalipse e as cartas de Paulo, Pedro, Judas e João. Neste mundo imaginário conhecemos bastante sobre a vida, o caráter, os milagres e as palavras de Jesus de Nazaré. Sabemos com quem ele andava, quem o hostilizava, a quem ele distribuía tolerância e quem merecia sua impaciência. Ouvimos suas histórias, memorizamos seus ditados, trememos diante de suas exigências e somos continuamente desafiados pela sua vitalidade. Vemo-lo lavar os pés dos discípulos, comer com pecadores, abraçar leprosos, ter os pés massageados por prostitutas. Testemunhamos sua espiral voluntária em direção à morte e temos desconcertante indício de sua ressurreição.
Mas é só. Nada sabemos das aventuras de capa e espada de Atos, das austeras recomendações de Judas, das elaboradas explicações de Paulo, do novo céu de glória e da nova terra sem templo do Apocalipse.
A pergunta que faço, e que um número cada vez maior de cristãos se têm visto impelida a fazer, é: será possível ser cristão tomando o Jesus dos evangelhos – o Jesus de Nazaré narrado, morto e ressuscitado no testemunho dos evangelistas – por inteiramente suficiente? Será possível ser cristão (e ser igreja, seja lá o que isso for) sem abraçar necessariamente a teologia de Paulo e a administração eclesiástica de Atos?
Se sentimo-nos forçado a pensar assim é devido a uma convicção crescente, vertida gota a gota das mais inesperadas fontes, de que em dois mil anos de história o cristianismo têm, essencialmente, supervalorizado Paulo em detrimento de Jesus. Muitos de nós estamos familiarizados com a tese, popular em determinados círculos, de que Paulo propôs um cristianismo institucional que tem pouca relação com a vida e a originalidade de Jesus de Nazaré. Segundo essa teoria, o Apóstolo teria contribuído mais do que ninguém para desvirtuar o cristianismo simples e anárquico de Jesus, transformando-o em instituição e abrindo precedente para que nos milênios que se seguiram o cristianismo fosse mais conhecido por sua obsessão com a crença correta do que por sua pureza de coração; mais conhecido por sua mania em ter o primeiro lugar do que, como sonhara Jesus, em ser reconhecido pelo amor.
Paulo foi mal entendido; Jesus não foi sequer levado em conta.
Será verdade que Paulo construiu e por fim consagrou a imagem de um Jesus descarnado, glorioso mas distante da vida real, em tudo contradizendo o Jesus de carne e osso, vivo e vital, dos evangelhos? Minha posição mais ou menos estabelecida sobre o assunto é que, na história do cristianismo, Paulo foi mal entendido e Jesus de Nazaré não foi sequer levado em conta. As reflexões do Apóstolo foram moldadas à imagem de seus intérpretes e por fim cristalizadas em dogma, enquanto os desafios de Jesus permaneciam – e permanecem – virtualmente intocados, virtualmente inéditos.
Cresce em mim, além disso, a impressão de que a institucionalização e conseqüente mumificação do cristianismo histórico deve-se menos a uma interpretação [possivelmente equivocada] de Paulo do que à leitura tradicional que os cristãos imprimiram, desde provavelmente o segundo século, ao livro de Atos dos Apóstolos. Se é que acabamos, por assim dizer, perdendo Jesus de vista, isso aconteceu em algum momento da nossa leitura de Atos.
Por um lado, não deve ser à toa que levamos Atos tão a sério em nossa busca por orientação. Não temos, afinal de contas, registro mais importante da transição entre a vida terrena de Jesus e o que veio depois; entre o treinamento intensivo dos discípulos e a aplicação desse ensino na vida real; entre a ordem de fazer discípulos em todo o mundo e seu eventual cumprimento; entre o sonho messiânico de transformar o mundo e sua possível execução.
Se a postura e a mensagem do Jesus dos evangelhos são por um lado prescientemente pós-modernos e contracultura, os apuros dos apóstolos em Atos parecem estar muito mais próximos do que convencionamos associar à experiência e à essência da igreja. Nos evangelhos pode até parecer que Jesus demole as bases institucionais da religião, mas poucas páginas Novo Testamento adentro vemos Paulo fundando igrejas, apontando líderes, pregando de porta em porta e passando a sacolinha. E é em Atos e não nos evangelhos, dizem-me, que vemos o retrato da igreja e a prescrição do cristianismo como deveriam ser – então, Brabo, aguente o tranco.
A pergunta que quero me forçar a fazer é se existe em Atos algum traço do Jesus indomável que vejo com tanta clareza nos Evangelhos; e, caso exista, se será possível rastreá-lo, tanto tempo depois, no relato sinfônico das façanhas dos apóstolos. Haverá em Atos algo que faça jus ao rabi que curava no sábado e semeava bem-aventuranças e maravilhava dos pássaros e abraçava criancinhas e calava diante de reis?
O que torna essa pergunta e sua resposta ainda mais relevantes está na curiosa circunstância de que o autor do livro de Atos é quase certamente Lucas, autor de um dos evangelhos, e que ele mesmo parece ter visto um relato como continuação inevitável do outro. No primeiro verso do primeiro capítulo de seu livro o autor faz a famosa referência a um tratado anterior (o evangelho de Lucas), no qual relatara “as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar”. A implicação, naturalmente, é que os evangelhos registram apenas uma porção, a primeira, das atividades de Jesus na terra; o livro de Atos fica implícito, consiste na parte II: aquilo que Jesus continuou a fazer e a ensinar através de seus discípulos.
A posição oficial do próprio Lucas, portanto, é que existe apenas continuidade entre a vida e o exemplo de Jesus de Nazaré (como registrados nos evangelhos) e os primeiros passos do cristianismo (como registrados em Atos). Não apenas uma única história e uma única linha narrativa, mas um único protagonista, que liga sem interrupção a parábola do bom samaritano ao discurso de Paulo em Atenas.
Deve ser, então, possível rastrear Jesus de Nazaré no livro de Atos; no mínimo, não deve ser impossível tentar determinar de que forma ou sob qual disfarce, na opinião de Lucas, o Filho do Homem, o rabi da Galiléia, prosseguiu agindo e ensinando através dos discípulos que preparou.
Prevejo que não será tarefa fácil. Em primeiro lugar porque, dois mil anos depois, é por certo impossível ler um livro da Bíblia de forma isenta, inteiramente livre do peso de milênios de história e de interpretação. Cada verso, cada inflexão, cada dúvida e cada aresta foram devidamente explicados, desbastados e passados a ferro pela multidão de intérpretes que nos precederam. Mesmo quando tomo a decisão consciente de aproximar-me do texto sem qualquer preconceito, descubro que o preconceito faz parte de mim mesmo, é componente inseparável da minha própria capacidade de julgamento. A consagração do texto anulou-o; sua notoriedade esgotou-o todo significado, e não há palavra que possa livrar-me do corpo desta morte.
Em segundo lugar, há que se enfrentar o fato cru de que há em Atos pouquíssimas referências, em menção ou imitação, às atividades e palavras do rabi de Nazaré.
Muito já se falou sobre a ausência do Jesus histórico nas cartas de Paulo. Já foi observado que, se dependêssemos do testemunho de Paulo, não teríamos como saber que Jesus nasceu de uma virgem, ensinava através de parábolas e era companheiro de pecadores.
Paulo não menciona sequer uma frase de Jesus, um milagre, um evento importante que não seja sua morte e ressurreição.
Preciso confessar que essa ausência do maltrapilho de Nazaré me incomoda mais em Atos do que em Paulo. As cartas de Paulo são – como o nome diz – cartas, escritas todas elas com o intuito de abordar questões muito específicas diante de grupos muito específicos. Nenhuma delas foi escrita com a finalidade de apresentar a pessoa de Jesus ou a sua história para quem não o conhecesse ou nunca tivesse ouvido falar dele. Essa circunstância, por si só, deveria servir para explicar em grande parte a ausência de referências diretas à história e ao ensino de Jesus. Essas coisas, o apóstolo poderia pressupor, estavam sendo devidamente transmitidas em outro lugar; apresentar Jesus não é, definitivamente, o que o leva a escrever.
Em Atos, por outro lado, a coisa deveria ser diferente. Vemos aqui, em grande parte, Jesus sendo proposto e apresentado a gente que nunca ouviu falar dele – ou, em alguns casos, a gente que tinha dele informações duvidosas e pouco positivas. E, surpreendentemente, em nenhum lugar – em ato nenhum de nenhum apóstolo – encontramos referência às palavras, às histórias e ao modo de vida do Jesus dos evangelhos. Pedro jamais diz “sabem, fui discípulo de um rabi na Galiléia, um homem absolutamente notável que descobri mais tarde ser o messias. Estávamos um dia no meu barquinho quando ele contou uma parábola que nunca vou esquecer…”
Nada. Nem uma palavra. Nenhuma menção a Jesus de Nazaré que não seja com respeito à sua morte, sua ressurreição, ao fato de que tinha discípulos ou à promessa do Espírito Santo. Se Lucas não perdeu Jesus de vista quando escreveu seu segundo tratado, se os discípulos não perderam Jesus de vista quando se embriagaram com o Espírito Santo, se Paulo não perdeu Jesus de vista quando foi cegado pelo esplendor de Damasco; bem, o mesmo não pode ser dito de mim. Preciso saber se ele continua mesmo ali.
.
Paulo Brabo
Wagner, gostei muito desse texto. Segundo entendo, mais ou menos de acordo com Bultmann, o Jesus real só pode ser visto através de nuvens que quase lhe encobrem por completo sua fisionomia, inclusive nos Evangelhos. O que dirá no restante do NT?
ResponderExcluirabraços, amigo