quarta-feira, 21 de julho de 2010

“Quem dizes que eu sou?”


Conta-se que Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo”. Ainda é possível usar essas mesmas palavras? Elas têm alguma flexibilidade? Alguma abertura a novos significados? Se estiverem presas ao seu passado teísta, em significados pelos quais têm sido tradicionalmente entendidas, então devemos descartá-las por sua insignificância.

Seria honesto arrancar essas palavras daquele passado e abri-las a novos significados? Acredito que sim. Palavras mudam. Percepções da realidade e até Deus, mudam. Explicações distorcem a verdade com o passar do tempo. Então a pergunta real a que devemos responder é: Conseguiremos capturar a essência desse Jesus em palavras que transcendem os modelos do passado, mas que ainda sejam capazes de afirmar – e de convidar meu mundo a afirmar – a experiência de Cristo? Ou seja, uma vez anulado o conceito do teísmo, esse Jesus ainda poderá constituir uma experiência de Deus para nós? Ainda poderá ser uma porta pela qual chegamos à expressão do sagrado? As respostas a essas perguntas determinarão com clareza se aquilo que buscamos é uma reforma autêntica do cristianismo ou se estamos iludidos e, a partir do temor reprimido, tentando esconder ou mascarar a morte do cristianismo.

Se o teimo não existe mais, poderá o nome de Jesus continuar soando doce aos ouvidos dos fiéis, levando nossos joelhos a se dobrarem em reverência?

Quando começamos a explorar a vida desse Jesus desvinculado da estrutura teísta do cristianismo passado, energizado e até encantado ao ver emergir uma visão inteiramente nova. O que vejo é um novo retrato de Jesus. Ele foi mais profunda e plenamente vivo que qualquer outra pessoa que conheci em minha vida, na história ou na literatura. Vejo-o apontando para algo que ele denomina “Reino” de Deus, onde novas possibilidades exigem nossa consideração. Vejo-o retratado como aquele que constantemente demonstrava as barreiras que separa as pessoas uma das outras. Vejo-o convidando seus seguidores a juntar-se a ele para caminharem sem temor para além daqueles limites de segurança que sempre proíbem, bloqueiam ou negam o nosso acesso a uma humanidade mais profunda. Talvez, sobretudo, ele seja para mim um eliminador de fronteiras, que me permite visualizar a possibilidade de minha própria humanidade atravessar minhas barreiras humanas para alcançar a divindade que sua vida revela, que de fato nós, cristãos, dizemos que ele possui.

Vejo Jesus como aquele que chama a todos que o cercam para caminhar para além de seus temores tribais. No tempo de Jesus, o povo judeu organizava avida para ter o mínimo de contato social possível com os gentios. A barreira era enorme. Os judeus julgavam-se separados dos gentios pela circuncisão, ordenada pela Torá, e pelo regime da alimentação. Seu status “separado” era assumido por ordem de Deus. Entretanto, Jesus é retratado como uma pessoa que convidava outros a deixarem de lado seus medos tribais e xenófobos e darem um passo além dessa fronteira. Parece lhes dizer que uma nova humanidade habita do outro lado desses temores.

Não é de admirar que Jesus tenha provocado a hostilidade que o levou à morte, já que deixou claro que não permitiria concessões a essa visão.

Fronteiras tribais são poderosas divisoras da vida humana. Elas dão origem aos mais desumanos comportamentos da humanidade. Entretanto, no retrato bíblico de Jesus, o vemos relativizando essas linhas divisórias e convidando as pessoas a entrar na experiência da humanidade não tribal. Creio que esse é um passo importante para transpormos nosso sistema de segurança evolucionário, refletindo um chamado para que nos tornemos algo que nós, seres humanos, jamais fomos. É um convite para entrarmos na nova existência sobre a qual Tillich escreve – Uma humanidade sem barreiras, uma humanidade sem reivindicações defensivas por causa de temores tribais, uma humanidade transformada, tão plena e tão livre que a presença de Deus se torna perceptível dentro dela.

A Bíblia também retrata Jesus como aquele que vai além das barreiras do preconceito humano.

O preconceito amarra a vida humana de tal forma que diminui nossa própria humanidade. Quanto mais preconceitos temos, menos humanos somos. Portanto, o preconceito é uma técnica da sobrevivência exigida pelo egocentrismo de nossa reação à incerteza da auto consciência. Mas Jesus é mostrado nos Evangelhos com alguém que relativizava essa habitual paixão negativa.

Jesus entendia, como todos nós mais cedo ou mais tarde entenderemos, que Deus não pode ser confinado nos limites de nossos sistemas religiosos. Quando reivindicamos a verdade máxima para nossa versão de Deus, nossa revelação, nossa igreja, nossa fonte de autoridade, ou mesmo nossos líderes eclesiásticos, estamos de fato construindo outro muro de proteção em volta de nossa insegurança.



Pare e reflita

Um Novo Cristianismo Para um Novo Mundo

John Shelby Spong

terça-feira, 20 de julho de 2010

Como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus

Outro dia me surpreendi me perguntando como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus. Em termos positivos, quis saber a respeito da função de Deus em minha vida (já sei, você vai dizer que reduzi deus a uma coisa e estabeleci com ele uma relação mecânica e funcional, mas deixa pra lá, você vai ver que não é isso, só estou usando a melhor palavra que achei). O primeiro impulso foi na direção da questão ética: Deus é minha matriz de certo e errado, bem e mal. Há muita coisa que faço e deixo de fazer na vida por acreditar que Deus é um padrão a ser seguido ou obedecido, não necessariamente por causa de Deus em si, mas a bem de quem o obedece ou segue: algo como seguir as orientações de um manual de instruções – você pode fazer do seu jeito, mas a coisa não vai funcionar, e o resultado não é que o manual vai ficar triste ou bravo com você, mas que a coisa não vai funcionar mesmo.

Logo depois desta conclusão rápida, me pareceu óbvio que Deus não seria a única alternativa para que eu tivesse uma orientação ética: os ateus e agnósticos também têm sua ética. O passo seguinte foi imaginar que outra função Deus ocuparia em minha vida além da referência ética.

Provavelmente você afirmaria o óbvio: Deus é aquele que cuida de mim, me protege, provê para o meu bem e minha felicidade. Embora eu acredite nisso, na verdade, não me basta, pois a vida está cheia de acontecimentos que me induziriam a acreditar exatamente o contrário. Caso eu dissesse a um cético que Deus é como um pai, mas um pai todo-poderoso que cuida de mim, certamente eu seria bombardeado de perguntas. Como disse Robert De Niro: “Se Deus existe, ele tem muito o que explicar”. Além disso, estar sob o cuidado de um superprotetor não é a razão porque acredito em Deus: de fato, abro mão de ser protegido – minha solidariedade com a raça humana não me permite esperar melhor sorte do que a das crianças abandonadas, dos enfermos crônicos, dos miseráveis e vitimados pelas atrocidades dos maus. Ou Deus protege todo mundo, ou a proteção não serve como fundamento para a crença nele.

A idéia de um ser lá em cima fazendo e acontecendo aqui em baixo, como um mestre enxadrista que faz dos seres humanos peças num tabuleiro cósmico nunca me agradou. Mas mesmo assim, acredito nisso: sou daqueles que acredita que Deus está no controle do universo e da história. O que quero dizer é que não acredito em deus como se as coisas que acontecem ou deixam de acontecer fossem resultado de decisões divinas, do tipo: vou dar este emprego pra ele? vou curar esta criança? vou dar este câncer de mama para ela? vou fazer com que eles se casem?, e assim por diante, como se Deus fosse uma máquina de decisões que não para nunca e afeta tudo quanto existe em tudo quanto é lugar em relação a todo mundo.

A maneira como percebo Deus é mais ou menos como percebo o sol: ele simplesmente está lá. Acredito em Deus mais ou menos assim: Deus está, ou se preferir, Deus é. Assim como o sol irradia seu calor sem cessar, também Deus afeta tudo em todo lugar em relação a todo mundo. O sol não precisa tomar decisões: ele simplesmente está lá. Assim também em relação a Deus.

É verdade que nem todas as pessoas e nem todos os lugares são afetados pelo sol, e também que as pessoas e lugares que são afetados pelo sol experimentam o sol de maneira diferente e com conseqüências as mais variadas. Mas não por causa do sol. O sol está sempre lá e é sempre do mesmo jeito. O que muda é a realidade sobre a qual o sol incide: se a pessoa está à sombra é afetada de um jeito, se está descoberta é afetada de outro; o fruto do topo da árvore é afetado de um jeito, escondido entre as folhas, de outra; a água do lago é afetada de um jeito, empoçada, de outro; uma planta em boa terra e irrigada é afetada de um jeito, em solo ruim e seca, de outro. O sol está sempre lá e do mesmo jeito, aqui embaixo é que as coisas são diferentes.

Assim também em relação a Deus. Ele é, e sempre do mesmo jeito, as condições que lhe são dadas é que mudam: uma criança sozinha na rua e outra num ambiente familiar de afeto e amor; um homem que aproveitou bem suas oportunidades de estudo e formação profissional e outro que não teve a mesma sorte; alguém com uma doença congênita e outra pessoa com propensão atlética; a periferia do Haiti e o condomínio na Califórnia. Deus é, e sempre o mesmo, fluindo de maneira plena e equânime sobre tudo e todos, em todo tempo e lugar. As realidades sob sua influência é que são distintas. Por esta razão as conseqüências de sua influência são diversas e jamais podem ser padronizadas.

Já imagino o que você está pensando. Você acha que acabei de tirar a dimensão pessoal de Deus, e passei a tratar Deus como uma força ou uma energia. Faz sentido, mas tenho uma saída. A diferença entre Deus e uma força ou energia é que as forças e energias não afetam dimensões pessoais. Por exemplo, não é possível prescrever 30 minutos de banho de sol para adquirir capacidade de perdoar, 20 minutos de banho de chuva para se livrar do vício de mentir, ou 45 minutos de banho de luz para se encher de compaixão. Essas coisas: amor, perdão, misericórdia, justiça, solidariedade, pureza de coração, alegria e saudades são atributos pessoais, relativos a seres conscientes, auto-conscientes, com capacidades afetivas-emocionais, intelectuais e racionais, e volitivas. Por esta razão, o sol é apenas uma metáfora – incompleta, como toda metáfora – para Deus.

Deus não é uma energia ou uma força impessoal, mas o Ser–em–Si, fundamento pessoal de toda a realidade existente. Como disse São Paulo, apóstolo: em Deus somos, nos movemos e existimos.

Dallas Willard me ajudou muito a compreender isso quando afirmou que a principal maneira como somos afetados por Deus é através de “pensamentos e sentimentos que são nossos, mas não tiveram origem em nós”. Esta é minha experiência de Deus. Continuo acreditando que Deus está no controle de tudo, é livre para tomar decisões e afetar a realidade conforme sua vontade, cuida de mim e de todo mundo, faz e acontece na história e nas minhas circunstâncias, dispões de pessoas para a vida e para a morte, e o que mais você quiser ou considerar necessário atribuir como capacidade e direito a alguém que seja chamado Deus, afinal, por definição, Deus é incondicionado e ilimitado. Mas todas estas coisas atribuídas a Deus me são imponderáveis e inacessíveis. O que me afeta de fato é que crendo em Deus e conscientemente me submetendo a Ele, experimento pensamentos e sentimentos que são meus, mas não têm origem em mim. Sou levado a um estado de ser ao qual jamais conseguiria chegar sozinho. Deus é meu interlocutor amoroso. Deus é meu companheiro de viagem.

O que acontece fora de mim, se Deus faz ou deixa de fazer, se foi ele quem fez ou deixou de fazer, não me diz respeito, minha razão não alcança, e, portanto, não é objeto de minha preocupação para caminhar pela vida. Mas o que acontece dentro de mim, isso sim, é tudo quanto eu tenho e me basta. Tudo quanto tenho para orientar a minha peregrinação existencial são sentimentos e pensamentos que são meus, muitos deles que não tiveram origem em mim. Isso é questão de fé. E essa é a minha fé: estou sob Deus, suplicante e humildemente dependente de seu amor para me tornar tudo quanto estou destinado a ser, independente do que me possa acontecer.

A mim me basta saber que em pastos verdejantes às margens de águas puras e cristalinas, ou no vale da sombra da morte, nada preciso temer, pois Deus está comigo, refrigerando-me a alma, guindo-me pelos caminhos da justiça por amor do seu nome. A mim me basta saber que se Deus é por mim, ninguém pode ser contra mim, pois nada pode me separar do amor de Cristo: nem tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada, pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Não sei como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus. Muito menos se Deus não acreditasse em mim. E nem quero saber.


Ed René Kivitz

domingo, 11 de julho de 2010

Como operar a transição do velho para o novo paradigma

Damos por já realizada a demolição crítica do sistema de consumo e de produção capitalista com a cultura materialista que o acompanha. Ou o superamos historicamente ou porá em grande risco a espécie humana.

A solução para a crise não pode vir do próprio sistema que a provocou. Como dizia Einstein:"o pensamento que criou o problema não pode ser o mesmo que o solucionará". Somos obrigados a pensar diferente se quisermos ter futuro para nós e para a biosfera. Por mais que se agravem as crises, como na zona do Euro, a voracidade especulativa não arrefece.

O dramático de nossa situação reside no fato de que não possuímos nenhuma alternativa suficientemente vigorosa e elaborada que venha substituir o atual sistema. Nem por isso, devemos desistir do sonho de um outro mundo possível e necessário. A sensação que vivenciamos foi bem expressa pelo pensador italiano Antônio Gramsci: "o velho resiste em morrer e o novo não consegue nascer".

Mas por todas as partes no mundo há uma vasta semeadura de alternativas, de estilos novos de convivência, de formas diferentes de produção e de consumo. Projetam-se sonhos de outro tipo de geosociedade, mobilizando muitos grupos e movimentos, com a esperança de que algo de novo poderá eclodir no bojo do velho sistema em erosão. Esse movimento mundial ganha visibilidade nos Fóruns Sociais Mundiais e recentemente na Cúpula dos Povos pelos direitos da Mãe Terra, realizada em abril de 2010 em Cochabamba na Bolívia.

A história não é linear. Ela se faz por rupturas provocadas pela acumulação de energias, de idéias e de projetos que num dado momento introduzem uma ruptura e então o novo irrompe com vigor a ponto de ganhar a hegemonia sobre todas as outras forças. Instaura-se então outro tempo e começa nova história.

Enquanto isso não ocorrer, temos que ser realistas. Por um lado, devemos buscar alternativas para não ficarmos reféns do velho sistema e, por outro, somos obrigados a estar dentro dele, continuar a produzir, não obstante as contradições, para atender as demandas humanas. Caso contrário, não evitaríamos um colapso coletivo com efeitos dramáticos.

Devemos, portanto, andar sobre as duas pernas: uma no chão do velho sistema e a outra no novo chão, dando ênfase a este último. O grande desafio é como processar a transição entre um sistema consumista que estressa a natureza e sacrifica as pessoas e um sistema de sustentação de toda vida em harmonia com a Mãe Terra, com respeito aos limites de cada ecossistema e com uma distribuição equitativa dos bens naturais e industriais que tivermos produzido. Trocando idéias em Cochabamba com o conhecido sociólogo belga François Houtart, um dos bons observadores das atuais transformações, convergimos nestes pontos para a transição do velho para o novo.

Nossos países do Sul devem em primeiro lugar, lutar, ainda dentro do sistema vigente, por normas ecológicas e regulações que preservem o mais possível os bens e os serviços naturais ou trate sua utilização de forma socialmente responsável.

Em segundo lugar, que os países do grande Sul, especialmente o Brasil, não sejam reduzidos a meros exportadores de matérias primas, mas que incorporem tecnologias que dêem valor agregado a seus produtos, criem inovações tecnologias e orientem a economia para o mercado interno.

Em terceiro lugar, que exijam dos países importadores que poluam o menos possível e que contribuam financeiramente para a preservação e regeneração ecológica dos bens naturais que importam.

Em quarto lugar, que cobrem uma legislação ambiental internacional mais rigorosa para aqueles que menos respeitam os preceitos de uma produção ecologicamente sustentável, socialmente justa, aqueles que relaxam na adaptação e na mitigação dos efeitos do aquecimento global e que introduzem medidas protecionistas em suas economias.

O mais importante de tudo, no entanto, é formar uma coalizão de forças a partir de governos, instituições, igrejas, centros de pesquisa e pensamento, movimentos sociais, ONGs e todo tipo de pessoas ao redor de valores e princípios coletivamente partilhados, bem expressos na Carta da Terra, na Declaração dos Direitos da Mãe Terra ou na Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade (texto básico do incipiente projeto da reinvenção da ONU) e no Bem Viver das culturas originárias das Américas.

Destes valores e princípios se espera a criação de instituições globais e, quem sabe, se organize a governança planetária que tenha como propósito preservar a integridade e vitalidade da Mãe Terra, garantir as condições do sistema-vida, erradicar a fome, as doenças letais e forjar as condições para uma paz duradoura entre os povos e com a Mãe Terra.



Leonardo Boff

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Os discursos ausentes: céu e inferno

Todo texto tem em alguma medida o sonho de alterar a realidade, e parte do pressuposto de que para isso bastará alterar a realidade dos seus leitores. Talvez mais do que qualquer outro escritor bíblico, o autor de Lucas/Atos investiu pesado nesse aspecto “formador de uma cultura” do seu discurso. Seu texto é pontuado por momentos decisivos que requerem um posicionamento do leitor, e estamos agora postados sobre o mais exigente e memorável desses pontos fulcrais. É o momento da improvável e custosa encarnação, na vida real, de um sonho – o sonho encapsulado no modo de vida e no modo de morte de Jesus. Lucas é sua única testemunha, e seu testemunho é este: a nova e ideal comunidade dos três mil e tantos, de cujas luzes temos nos ocupado, é para ser encarada como primeira moldagem de um vaso adequado para reter e distribuir mundo afora mundo o fluido sagrado da herança de Jesus.

Uma comunidade é definida pela intersecção dos discursos que a originaram, e Lucas trata de deitar muito claramente as diretivas que deverão caracterizar o legítimo movimento do reino. Como vimos, e o fio da narrativa deverá nos dar oportunidade de confirmar, neste dia de Pentecostes os desbravadores do reino dobraram-se à exigente persuasão do espírito, de que Jesus estava certo ao sustentar que arrepender-se é mudar o mundo e pecar é omitir-se. Desafiada e confrontada pela exposição de Pedro, uma pequena multidão ousou adentrar de mãos dadas esse mundo além do perdão, em que meros homens abraçam o exemplo não-condicionado de Jesus, encenam continuamente a sua subversão e inauguram uma comunhão tão escandalosamente generosa, desarmada e inclusiva que acabará representando ameaça a todas as manifestações controladoras de poder.

Antes de deixarmos para trás esta visão da glória de uma comunidade inteiramente humana (e, portanto inteiramente divina) e avançarmos para o confronto dessa sociedade revolucionária com um mundo avesso a mudança, será necessário fazer outra digressão. Porque, se enfatizamos cada um dos discursos presentes (todos eles não-condicionados e, portanto subversivos), não traçamos ainda os discursos ausentes – aqueles que não fazem parte da exposição e da incorporação da boa nova no livro de Atos, mas acabaram ganhando destaque nas obsessões e ênfases da igreja institucional até os nossos dias.

Se é objetivo do autor de Atos estabelecer quais devem ser as expectativas e as prioridades de uma comunidade que se proponha a levar avante o legado de Jesus, devemos crer que ele assenta a sua posição tanto pelo que diz quanto pelo que não diz. Denunciar os discursos ausentes, que intrometeram-se mais tarde na ideologia cristã, servirá não apenas para contrastar a límpida comunidade do reino com a turva igreja institucional que terminaria por sequestrar a sua herança; deverá servir também para elucidar porque esses discursos se intrometeram. Ficará evidente que a igreja apossou-se desses conceitos piedosos a fim de tornar a experiência cristã mais devocional e menos existencial – isto é, tornar passível de domesticação o que era incontrolável, tornar condicionado o que era não-condicionado. Nesse processo, terminou por ocultar o desafio e a integridade da boa nova do reino, tornando nula qualquer alegação de sua relação com ele.

O primeiro desses discursos ausentes, que não comparece no testemunho de Atos mas recebeu tremendo destaque depois, a ponto de tornar-se absolutamente central na articulação ideológica do “evangelismo”, é a questão de céu e inferno.

Porque na descrição do jorrar do espírito, na apresentação da boa nova por parte de Pedro e na primeira “conversão” exemplar não há nenhuma promessa de vida após a morte – nenhuma visão do paraíso, nenhuma ameaça de inferno1.

O discurso de Pedro, que parece ter articulado o que o espírito estava dizendo a todos e através de todos, pode ser resumido da seguinte forma: Jesus, o homem de Deus cujo ensino íntegro os homens consideraram insuportável ao ponto de assassiná-lo sem motivo por essa razão, Deus o fez Senhor e Messias. Agora que a própria morte mostrou-se incapaz de retê-lo, e estando em posição indistinguível da posição de Deus, ele confere que todos sejam capazes de compartilhar da lucidez do seu modo de ver a vida, de viver e de morrer. Ou, numa versão ainda mais resumida: Deus conferiu ao Marginal a posição de destaque, a fim de que abracemos a sua estirpe de marginalidade e dediquemos nossa vida à inclusão dos marginais.

De uma forma ou de outra, o argumento decisivo da argumentação de Pedro (e, como veremos, de toda apresentação da boa nova no livro de Atos) reside na singularidade de Jesus. A ressurreição é mencionada como desconcertante confirmação dessa singularidade, mas Pedro não oferece nenhuma indicação de que essa ressurreição seja ela mesma algo menos do que singular – isto é, seu argumento não estende a vida após a morte como padrão ou promessa adicional. Sendo assim, quando seria o momento mais favorável para pressionar o seu público com os horrores da punição e as recompensas da eternidade, Pedro se abstém de fazê-lo: sua ênfase permanece no perdão dos pecados, isto é, na reparação das omissões passadas, e no arrependimento, isto é, na adoção (no momento presente) do modo de vida de Jesus. Seu apelo é “salvem-se da mesquinheza desta geração.”

Em contraste com essa postura, a igreja acabaria deslocando por completo o argumento decisivo de seus esforços evangelísticos, transferindo-o da singularidade de Jesus para a ameaça do inferno e a oferta do céu. De longe, a forma mais comum de se apresentar a fé cristã (e isso retém em comum os dois lados da igreja formal separados pela fissura da Reforma), é oferecendo-se ao ouvinte uma chance de “salvação” – apresentada, bem-entendido, como uma oportunidade de escapar da condenação do inferno e abraçar a vida eterna no céu2.

De acordo com essa visão, converter-se não é assumir o perdão e adotar a vocação de alterar a tessitura do mundo, mas aceitar o convite de beneficiar-se pessoalmente do sacrifício de Jesus de modo a, por um lado, escapar de uma punição sem pausa no inferno e, por outro, ganhar a vida eterna no céu ao lado dos que você ama3.

Agora, se o livro de Atos descreve os primeiros passos do que viria a ser conhecido como igreja, e se deita as diretrizes apostólicas para se “ganhar pessoas para Jesus”, por que céu e inferno não são mencionados – não só nestes dois primeiros capítulos, mas até o final? Por que a recompensa futura e a punição incessante não recebem a ênfase que a igreja aprendeu a dar a ela?

Este não será o espaço para analisar o processo histórico através do qual a igreja acabou colocando céu e inferno no centro do seu discurso; não será nem ao menos necessário estabelecer a distinção entre a idéia de céu e inferno, como foram entendidos depois, e o conceito de ressurreição dos mortos (e renovação da terra) que consistia basicamente na estirpe de eternidade aguardada pelos judeus no tempo de Jesus4.

Bastará, em primeiro lugar, que tenhamos em mente que o discurso da eternidade está por completo ausente dos procedimentos exemplares da igreja nascente no livro de Atos e que não aparece no Novo Testamento associado à transmissão da mensagem e do legado de Jesus. Como os autores do Novo Testamento viam a coisa, evangelizar ou estender ao mundo a boa nova do reino não é acenar diante das pessoas com um ingresso gratuito para o paraíso, nem ameaçá-las com uma rampa até os fogos eternos.

Em segundo lugar, devemos aprender a reconhecer o papel que céu e inferno passaram a desempenhar na ideologia cristã. Alan F. Segal observa que “visões de céu e inferno prestam serviço à evangelização”, e disso resta abundante evidência mesmo nos nossos dias. Recorrer a céu e inferno como argumento decisivo na evangelização tem o duplo efeito de tornar a boa nova mais “espiritual” (isto é, mais palatável e menos exigente, no sentido de ter menos consequências para esta vida) ao candidato a cristão, e apelar para o instinto de “autopreservação emocional” que todos os homens têm em comum. Quem não se sentirá compelido a esquivar-se do sofrimento e a ganhar o gozo, numa transação que não requer esforço algum de sua parte?

Porém não é só na hora de angariar convertidos que céu e inferno se mostram ferramentas úteis. O domínio da vida eterna tem ainda uma poderosa função controladora sobre as pessoas. Numa sociedade que crê nesse tipo de coisa, quem tem o monopólio sobre o além tem também o controle das pessoas nesta vida, e pode manejá-las a seu bel-prazer.

Tanto no céu quanto no inferno os mortos servem para tornar concretas e legitimar as estruturas éticas e hierárquicas de uma sociedade. Aqueles que retêm as chaves do paraíso tornam-se logo os mais temidos e legítimos representantes do poder terreno, sendo que seu poder é exercido em dois níveis. Primeiro, as pessoas ficam mais fáceis de controlar porque crêem que a preservação de suas almas no além depende de que sigam à risca as expectativas e normas deitadas pelos líderes do presente sistema. Segundo, como a vida eterna oferece um futuro em que todas as injustiças serão corrigidas, qualquer tentativa de se implementar um mundo justo ainda nesta vida é vista com maus olhos, algo beirando ou ultrapassando o limite da heresia.

Como se vê, o resultado da adoção do discurso de céu e inferno é precisamente o oposto daquele que, acabamos de ver, ocasionou a distribuição do espírito subversivo de Pentecostes. Em Atos a boa nova é a transformação do mundo; no discurso de céu e inferno a boa nova é que este mundo não precisa ser transformado. Em Atos a boa nova origina uma comunidade não-condicionada que representará constante ameaça ao estado de coisas, estando destinada a “virar o mundo de cabeça para baixo”; no discurso de céu e inferno, a boa nova é usada para legitimar e sustentar um estado condicionado de coisas, sequestrando o apelo universal da imagem de Jesus enquanto garante que os efeitos de sua popularidade se mantenham sob controle.

Não é de estranhar, portanto, que no livro de Atos céu e inferno permaneçam à margem do discurso da comunidade do reino, porque seus membros tomam por absolutamente central manter vivo neles mesmos o caráter não-condicionado de seu mestre. Permanecerá uma comunidade viva, no sentido em que estarão inteiramente mergulhados na solução das questões sempre cambiantes desta vida. Nada que possa ser usado como ferramenta de dominação fará parte do seu vocabulário ideológico, porque a boa nova deverá permanecer libertadora em todos os sentidos.

Nesse sentido, os revolucionários do reino estão mantendo-se inteiramente fiéis às ênfases de Jesus, que se mostrou muito mais disposto a apresentar desafios e soluções para esta vida do que a prometer os confortos da próxima. Nos evangelhos se Jesus distribuía curas, ou até mesmo ressurreições, era porque queria resgatar a dignidade e reforçar os desafios desta vida. Ele ressuscitava porque, muito claramente, cria que as pessoas ainda tinham a sua missão – a missão dele – para cumprir, e porque cria que na balança das eras é só este lado da eternidade que conta. Sua proposta incessante era de que que a experiência humana na terra requer a redenção e a reviravolta da mudança de critérios, cujo resultado é a paulatina implantação do reino. Mesmo o perdão dos pecados, com o qual o batismo estava associado, era oferecido como libertação destinada a derrubar qualquer impedimento que se interpusesse entre o ser humano e o assombro da transformação do mundo – este mundo.

Foi precisamente dessa forma que os romeiros de Pentecostes entenderam a sua vocação; não como a certeza da vida eterna no céu, mas como a certeza da urgência dos desafios desta terra. Sua conversão não estava fundamentada na esperança do paraíso, que pelo que sabemos não foi nem sequer mencionado. Quem investe todo o conteúdo da sua fé na garantia de uma felicidade futura age como que não tem pressa, e a postura dos revolucionários do reino é de absoluta urgência. Por isso despojam-se radicalmente de todo embaraço, por isso estão sempre juntos, por isso prestam contínua assistência uns aos outros e a todos que estão chegando: o céu pode esperar, mas a cura deste mundo exige atenção imediata.



Visões de céu e inferno prestam serviço à evangelização.

Alan F. Segal, Life After Death

Paulo Brabo