sábado, 20 de fevereiro de 2010

Mito e Autocompreensão de Jesus

A pergunta pela autocompreensão só se esclarece no contexto da linguagem judaica de sinais existente naquele tempo: somente com os meios de sua religião é que Jesus podia exprimir que função ele atribuía a si mesmo. Antes de responder à pergunta se a qual título ele, possivelmente, aplicou a si mesmo, dever-se-ia levar em consideração que o decisivo para a autocompreensão de Jesus não é esse ou aquele título, mas a “historicização” do mito escatológico em toda sua atividade.

Ela envolveu sua pessoa com um brilho sobrenatural. Ela emprestou-lhe um papel decisivo no drama entre Deus e o ser humano no presente: ele fez do reinado de Deus uma experiência histórica atual – à medida que, de um lado, experiências atuais concretas tornaram-se presença real mítica no reinado de Deus e, outro lado, parábolas e comportamentos simbólicos tornaram-se imagens de uma realidade mítica que (ainda) não estava presente.

Esse brilho sobrenatural, produzido pelo mito – produzido por um mito no qual Jesus e seus discípulos viviam – era a causa de seu carisma, com o qual Jesus fascinava seus seguidores e exasperava seus opositores. Jesus era um carismático judeu que obtinha seu poder e irradiação pelo fato de ter revigorado a linguagem de sinais mítica, ética e ritual do judaísmo a partir do centro de sua fé judaica: ou seja, a partir do axioma fundamental da fé monoteísta. Seu anúncio era rigorosamente teocêntrico.

Com essa revitalização da linguagem religiosa de sinais judaica, ele unia-se a uma corrente de movimentos de restauração desde do tempo dos macabeus, os quais, todos, opunham-se à dissolução da identidade judaica operada pela prepotente cultura estrangeira. É característico dos carismáticos que a autoridade deles (o “carisma” deles) pode ser exercido sem apoio em tradições e funções existentes, na verdade, muitas vezes contra elas. Disso se depreende que, consequentemente, não é necessário que Jesus se tenha identificado com algum dos papéis preexistentes de libertador ou salvador. Ainda que um juízo seguro seja bastante difícil, sendo improvável que ele próprio tenha se atribuído determinada expectativa de um papel predefinido.

Não existe o Jesus histórico num mundo sem mitos – e, por outro lado, o Cristo mítico que, em razão de interpretações pós-pascais, distancia-se sempre mais do mundo histórico. Já o Jesus histórico viveu num mito que revitalizou o axioma básico monoteísta da religião judaica. Ele viveu no mito do reino de Deus que viria, mediante o qual finalmente deveria tornar-se realidade aquilo que o monoteísmo judaico já havia sempre postulado: que Deus se tornará a realidade determinante para tudo. Jesus podia pressupor esse mito em sua pregação; ele não o explica em parte alguma. Contudo, ele o modificou mediante a maneira pela qual ele viveu nele e com ele.

1 – Ele o historicizou, à medida que o conectou à sua própria história e a suas ações.

2 – Ele lhe conferiu uma forma de expressão poética em parábolas que continham um estímulo para uma nova compreensão de Deus.

3 – Ele o ligou a formas de expressão político-simbólicas, desmilitarizando-o assim, à medida que o desvinculou da esperança de subjugação dos pagãos. Mas ele não o despolitizou. Ao contrário, Jesus situou-se no contexto dos conflitos político-simbólicos de seu tempo. Assim como a expectativa de uma mudança escatológica de todas as coisas não aconteceria sem o conflito entre as potências dominantes e o povo judaico – da mesma forma, essa tensão política constitui o pano de fundo do anúncio escatológico de Jesus. No entanto, Jesus concede à esperança religiosa uma grande autonomia em relação à política: a lealdade com relação a Deus não obriga a uma revolta contra o imperador, mas, justamente por isso, não compromete a uma lealdade incondicional ao imperador. A pessoa mesma deve decidir, lá onde ambos entram em conflito: “O que é de César, daí a César – o que é de Deus, a Deus” (Mc 12,17).


A Religião dos Primeiros Cristãos
Gerd Theissen

5 comentários:

  1. O Jesus histórico e a sua “historicidade” do mito “mitologizidada” envolveram sua vida, sua historia, sua caminhada, em um processo constante de trazer para nós, em nossa existência o reino de Deus “mitoal” escatológico, mas em sua substancialidade “real”, ao mesmo tempo em que “miticologico”, tanto para os seus discípulos que viveram e utilizaram de seus ensinamentos envoltos pelo símbolo das parábolas com significados, como também pela experiência “mitical” de sua presença.

    Abraços e mais uma vez, bela reflexão!!!

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  2. A questão do Jesus histórico e do Jesus "construido" é uma das questões mais polêmicas dos estudos bíblicos. Sabemos que durante os anos, cada um construiu o seu Jesus. Mas cada vez mais, a ciência histórica procura chegar o mais perto possível do homem de carne e osso e não do homem que virou deus. Não que o homem que virou deus seja insignificante para nós, pelo contrário, pois é resultado da construção de fé dos primeiros discípulos, e é nossa herança também.

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  3. Eduardo

    É bom notar também que aquele casamento em conflito, não é tão simples tal afirmação, e principalmente quando se refere a Jesus.

    Um abraço

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  4. o que você teria a dizer sobre o casamento em conflito (dualismo e unitarismo)?

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  5. Edu,
    Vou te responder e ao Márcio.
    Você sabe que quando as aulas começam a minha vida fica uma loucura, loucura, loucura.

    Um abraço

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