A preocupação que norteou a escrita dos ensaios reunidos em Realização do homem, realização de Deus foi, sobretudo, a busca por uma nova perspectiva na qual teologia e espiritualidade pudessem ser enfocadas adequadamente, sem o peso de tantos pressupostos que, ao longo do tempo, acabaram por colocar esses termos em campos quase opostos.
Teologia é necessariamente reflexão humana e tarefa inacabada. Trata-se de um trabalho que a razão humana desenvolve sobre os dados da Revelação consignados nas Escrituras e na experiência. Não faz sentido pensar a teologia senão dessa forma; a alternativa, sumamente perigosa, é tê-la como produto acabado, numa confusão de papéis que faz a teologia assumir o lugar da própria Revelação. A Teologia procura compreender as dinâmicas pelas quais esses diferentes testemunhos sobre a Verdade (entendida sempre como realidade pessoal e relacional) foram produzidos e consignados; procura refletir sobre esses testemunhos, agrupando suas percepções em torno de eixos interpretativos.
É, assim, esforço humano; e, portanto, esforço histórica e culturalmente condicionado. A Teologia é sempre relativa! Por força disso, só faz sentido num contexto de diálogo, onde as perspectivas de determinada teologia possam ser discutidas à luz de outras construções teológicas. Já não podemos mais acreditar em teologias “absolutas”, que absolutizam sua própria compreensão, seu viés específico de análise. Consequentemente, teologia é tarefa inacabada. Não pode haver um sistema teológico definitivo, pela simples razão de que os contextos históricos – que produzem as teologias, na medida em que esse esforço racional sempre é histórico e historicamente condicionado – mudam; transformam-se. Uma Teologia definitiva, absoluta portanto, só faria sentido na trans-história, não na história!
Esta percepção se estende, necessariamente, ao trabalho dogmático. Isto já está implícito no que afirmei; desdobro apenas para frisar. As construções dogmáticas são historicamente condicionadas; portanto, a tradução da fé em novos contextos históricos e culturais exige que o edifício dogmático seja constantemente reformado. Nada mais adequado, aliás, para quem crê que Ecclesia reformata semper reformanda! Não basta repetir, para o público do século XXI, os termos das controvérsias cristológicas do século V; isso nos obrigaria a primeiro levar o homem do século XXI a pensar como neoplatônico, para então conseguir compreender a cristologia de Calcedônia, com suas hipóstases, suas naturezas, sua consubstancialidade. O que é necessário é traduzir a fé para o nosso contexto, sem a obrigação de responder a perguntas que não estão mais sendo feitas, mas com a obrigação incontornável de responder às perguntas que são relevantes em nossa própria época!
Quando falamos em espiritualidade (definamos: formas específicas de vivência da experiência de fé; nesse sentido, patrimônio de toda a religiosidade humana; o que nos interessa no momento são as espiritualidades cristãs), precisamos encarar o fato de que falamos de uma realidade também histórica. As formas de espiritualidade surgem em momentos históricos definidos e respondendo a questões colocadas por esses momentos. A espiritualidade dos padres do deserto surgiu no século III como resposta a uma demanda específica: uma reação ao ambiente fortemente urbano do Império romano do Oriente, ambiente no qual a Igreja se sentia plenamente integrada (a espiritualidade do deserto foi, portanto, uma espiritualidade de protesto em relação a essa Igreja); a espiritualidade franciscana, por sua vez, surgiu no século XIII, num contexto de renascimento urbano na Europa ocidental, como forma de responder, de forma igualmente crítica, aos desafios colocados por esse crescimento urbano (em especial o problema da pobreza). No entanto, enquanto na prática a espiritualidade do deserto era uma espiritualidade marcada pelo retirar-se do mundo, a espiritualidade franciscana era caracterizada pela vivência da espiritualidade no meio da realidade mundana.
Se as formas de espiritualidade são históricas, também não podem ser absolutizadas. A rigor, viver a espiritualidade do deserto, ou a espiritualidade franciscana, não é possível fora de seus contextos geradores. O que mostra que, ainda que essas espiritualidades possam continuar válidas em suas intuições básicas, precisam ser constantemente redefinidas para continuar a ser relevantes em novos contextos históricos. Nesse sentido (e apenas como exemplo a ser citado), a espiritualidade franciscana redefiniu-se, no contexto latino-americano e especialmente brasileiro do final do século XX, em termos da opção pelos pobres que se tornou característica da Teologia da Libertação. Ao afirmar isto, faço menção ao fato de que o ideário franciscano combinou bastante com as ênfases, mais amplas, da Teologia da Libertação; não pretendo de forma alguma traçar a origem da Teologia da Libertação aos franciscanos, o que seria falso).
Compreender o caráter histórico das formas de espiritualidade opera uma enorme libertação: liberta-nos de nos obrigarmos à vivência específica da fé sob formas que, efetivamente, já não nos dizem nada. Em suma, eu não preciso viver a espiritualidade como os metodistas do século XVIII a viveram; posso encontrar formas atuais, próprias, de fazê-lo! Portanto, estamos falando em modelos múltiplos de espiritualidade. Que forma de espiritualidade é correta? A pergunta é errada em si mesma!
Múltiplos contextos exigem múltiplas formas de vivência da fé. Ela não será vivida do mesmo jeito, em Osasco, em Nova York e em Moçambique. Fatores históricos, culturais, econômicos; características específicas dos tecidos sociais; o peso e as configurações das formas tradicionais de religiosidade; tudo isso dará origem a formas específicas de vivência da fé. Nada mais errado, nesse sentido, do que pretender a uniformização da espiritualidade.
Entre as percepções centrais de nossa época está a valorização da diversidade. Isto precisa ser realidade também no que diz respeito às formas de vivência da fé. A padronização não pode ocorrer nem sequer no nível denominacional, como ocorria no passado recente protestante (“ser metodista é assim”; “ser batista é assim”); por mais preciosas que sejam essas e outras tradições, com suas ricas especificidades, encontraremos a necessidade de viver o legado central dessas tradições sob diferentes formas e com diferentes ênfases. Vê-se, por aí, quão distantes estamos daqueles anos (menos de meio século atrás) em que ainda se praticavam exclusões denominacionais apenas por conta do “falar em línguas”; hoje, não há denominação histórica no Brasil que não tenha seus “faladores de línguas” e que, portanto, não abrigue diferentes espiritualidades em seu seio!
Não falamos apenas em modelos múltiplos, mas também em modelos integrais de espiritualidade. Trata-se da percepção, fundamental (e que não poderá ser adequadamente trabalhada aqui), de que o ser humano é um ser integral. Ele não é, como supúnhamos a partir de uma teologia mal direcionada, um compósito de “espírito”, “alma” e “corpo”, mas um ser integral cujas múltiplas dimensões (física, emocional, afetiva, intelectual, volitiva, devocional e outras) se encontram profundamente interligadas. Um projeto de espiritualidade que secciona nossa humanidade; que valoriza apenas determinados elementos da experiência humana (a fé, a devoção), mas nega outros (a sexualidade, os afetos, as necessidades materiais, o intelecto) – será sempre um projeto defeituoso e que gerará inúmeras patologias.
Ao mesmo tempo, nossa época tornou-se, de forma inegável, uma época absorvida pela perspectiva holística (de hólon, “integral”, “total”; cf. 1 Tessalonicenses 5:23). O ser humano não aceita mais ser esquartejado em diferentes pedaços. Curiosamente, Oriente e Ocidente unem-se nessa perspectiva; e, fazendo isso, sem querer retornam a uma perspectiva profundamente bíblica, presente tanto no Antigo quanto no Novo Testamento!
Vê-se facilmente que, para este autor, os problemas da teologia e da espiritualidade relacionam-se intimamente com a especificidade de nosso próprio momento histórico: este instante de guinadas e de definições no seio da modernidade no qual estamos vivendo. Como praticar, em nosso tempo, uma teologia e uma espiritualidade dotadas de relevância? Como encarar plenamente os desafios que a modernidade faz à fé cristã sem que a substância dessa fé se perca no processo? Os textos reunidos em Realização do homem, realização de Deus: ensaios de teologia e espiritualidade foram pensados a partir dessa problemática básica. Seus diferentes temas interligam-se a partir dessas questões de fundo e é à luz delas que devem ser compreendidos.
RUI LUIS RODRIGUES
e aí, wagner, tudo bem?
ResponderExcluirgostei muito desse texto; ele é a apresentação de um livro? qual?
vou usá-lo como base para escrever sobre a mesma temática para postar lá no meu blog de teologia.
um abraço
E Aí Eduardo
ResponderExcluirPrimeiro quero te informar que o Fabio está dando aula lá no IBE.
O livro é: Realização do Homem, realização de Deus.
Editora Reflexão.
Um abraço
ah, é, não sabia! vai ser um bom professor. mas se pegar uns malucos como eu e cia ele vai ficar mais careca ainda....kkkkkkk
ResponderExcluirvaleu pelo nome do livro. vou colocar na minha lista de futuras compras. sabe como é, agora com o eduardinho o dinheiro vai tudo em fraldas...kkkkk ele já está com dois meses e é bonito igual à mãe(ainda bem)
abração