domingo, 10 de outubro de 2010

Palavra de Grande Inquisidor...



De tudo que Dostoiéviski escreveu em Os irmãos Karamazov, o que mais me impressionou foi o incidente do “Grande Inquisidor”. É assim: Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o reconheciam e sentiam o seu poder, mas ninguém se atrevia a pronunciar o seu nome. Não era necessário. De longe, o Grande Inquisidor o observava no meio da multidão e ordenou que ele fosse preso e levado à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso, proferiu a sua acusação:

Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. Em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas mediante sólidos princípios, Tu lhe ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas: A liberdade.

Agiste, pois, como se não amasse os homens... Em vez de apoderares da liberdade humana, Tu a multiplicaste, e assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda eternidade.

O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade, mas, de posse dela, são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o vôo e se trancam em gaiolas.

Um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores... Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui em baixo, viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamente deitados à sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente.

 E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou o vôo e passou a viver a vida mansa que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, um ano como os outros, chegou o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo azul do céu, grasnado, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos em vôo, as memórias de alturas, aquelas grasnadas de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade.

Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível agüentar a saudade. Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abril as asas, bateu-as para voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto da vida: em segurança, protegido pelas cercas, e triste por não poder voar.

Somos assim. Sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. Para voar, é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o vôo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas e isto que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas das gaiolas estivessem abertas. A verdade é o oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam.

Deus dá a nostalgia pelo vôo.

As religiões constroem gaiolas.

As religiões são instituições que pretendem haver colocado numa gaiola o Pássaro Encantado. E não percebem que o pássaro que tem presos nas suas gaiolas de palavras é um pássaro empalhado. É por isso que, no Antigo Testamento, era proibido falar o nome de Deus. Hoje, ao contrário, os religiosos não só falam o nome sagrado como também escrevem tratados de anatomia e fisiologia divinas. E proclamam que o pássaro só pode ser encontrado dentro de suas gaiolas. Religiões: uma enorme feira onde se vendem pássaros engaiolados de todos os tipos.

Os hereges que as religiões queimam e matam não são assassinos, terroristas, ladrões, adúlteros, pedófilos, corruptos. Esses são pecados suaves, que podem ser curados pelo perdão e pelos sacramentos. Os hereges, ao contrário, são aqueles que odeiam as gaiolas e abrem as suas portas, para que o Pássaro Encantado voe livre. Esse pecado, abrir as portas das gaiolas para que o Pássaro voe livre, não tem perdão. O seu destino é a fogueira. Palavra do Grande Inquisidor.


O infinito na Palma da Sua Mão
Rubem Alves

Depois de ter lido isso, Nunca mais serei engaiolado.
Sem medo da liberdade.

Wagner

2 comentários:

  1. Extremamente profundo.
    E que cada um descubra sua forma de voar!

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  2. Ainda temos muitos construtores de gaiolas, e muitos passaros com medo da vida e seus desafios, preferindo a mediocridade das gaiolas.
    Que pena que seja assim.

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