domingo, 19 de setembro de 2010

A INVENÇÃO DA GENTILEZA


Nisso, tomando-o pela mão direita, o levantou; imediatamente os seus pés e artelhos se firmaram e, dando um salto, pôs-se em pé. Começou a andar e entrou com eles no templo, andando, saltando e louvando a Deus. Todo o povo, ao vê-lo andar e louvar a Deus, reconhecia-o como o mesmo que estivera sentado a pedir esmola à Porta Formosa do templo; e todos ficaram cheios de pasmo e assombro pelo que lhe acontecera. Apegando-se o homem a Pedro e João, todo o povo correu atônito para junto deles, ao pórtico chamado de Salomão.

A disciplina da inclusão envolve mais do que um lançamento contábil; envolve mais do que fazer com que o que era contado como de fora passe a ser contado como de dentro. Em cada caso, cada vez que uma pessoa se dispõe a abraçar incondicionalmente uma outra, há um verdadeiro trajeto a ser vencido: um percurso a ser primeiro encontrado e depois percorrido. Ser salvo é ser salvo das distâncias, e arrepender-se é passar a agir deliberadamente de modo a transpô-las.

Vencer em regime definitivo a distância entre eu e o outro é o sentido da cruz e da salvação. É também, ao que tudo indica, a chave do reino de Deus.

Neste caso exemplar, um homem curva-se para estender a mão, e outro homem ergue-se firmando pela primeira vez sobre os próprios pés. No momento seguinte são iguais, olhando-se formidavelmente no mesmo nível. Encontraram-se lá em cima, e o mundo ganhou mais um cavaleiro andante.

Os antigos mestres da humanidade não desconheciam o autoconhecimento e o altruísmo, e os melhores entre eles não se limitavam a recomendá-los com palavras; porém foram necessários primeiro Jesus, depois a sua ausência, para introduzir os rigores da gentileza nas corredeiras do mundo dos homens.

O amor, como inventado ou apresentado por Jesus, não é apenas severo, absolutamente inflexível em sua disposição de favorecer e de integrar; é também consistentemente gentil – embaraçosamente gentil. De fato, sua severidade fica demonstrada no caráter inabalável de seu cavalheirismo.

Há algo de inerentemente ridículo no cavalheirismo, e é sem dúvida preciso ser um homem um pouco ridículo para ensinar – de fato ensinar – abraçando crianças, defendendo donzelas em perigo e lavando os pés de seus subordinados. A inclusão irrestrita e a defesa dos mais fracos nos parecerá invariavelmente embaraçosa, e os homens se mostrarão sempre mais prontos a abraçar o sacrifício do que o ridículo. Estamos prontos a pagar pelo heroísmo, mas menos dispostos a cobrir os custos da gentileza, porque a gentileza é a ultrajante manifestação de um amor resolutamente cavalheiresco – aquela estirpe peculiar de amor a que o Novo Testamento dá o nome de graça.

Muito declaradamente, não queremos ter nada a ver com a graça, que é por definição uma espécie voluntária de beleza. A graça é para deuses e dançarinos – isto é, é para homens, e sempre que possível preferimos nos manter abaixo desse patamar.

Porém Jesus, que tinha o sonho de semear homens de modo a colher o reino de Deus, não se contentava em exigir e oferecer menos do que o amor exuberantemente cavalheiresco – isto é, arbitrário, incondicional, anárquico, todo-inclusivo.

A gentileza, será preciso repetir, não é menos severa do que o amor. Não é uma manifestação de polidez ou de civilidade mascarada como tolerância. Não tem nenhuma relação com aquilo que costumamos chamar de “boa educação”, e que se destina a permitir a convivência ao mesmo tempo em que perpetua e valida a distância entre as pessoas. Ao contrário, a verdadeira gentileza é selvagem em sua obsessão de incluir, e saberá mostrar-se pouco gentil para com os que sonegam a graça e patrocinam a exclusão. A gentileza não ignora que é uma modalidade de anarquia e de revolução; não ignora que o seu próprio regime de violações (“Eu não condeno você”, Jesus ousou dizer à mulher adúltera, nisso transgredindo pelo menos tanto quanto ela) exige uma completa revisão dos critérios dos homens. O único mundo que a gentileza é capaz de conceber, e nisso insistirá até a morte voluntária, é um mundo em que todos se conformem a ela mesma.

Pedro e João, num único gesto, trazem para junto de si um homem que todos tomavam por definitivamente excluído dos canais aceitáveis da sociedade. E, trazendo-o para junto de si, trazem-no imediatamente para dentro – aqui está ele nos átrios do templo, saltando como um bailarino imbuído de uma nova graça, uma beleza inconcebível que transtorna todos que são submetidos a ela. O que estivera sentado à porta pedindo esmolas está agora dançando aqui dentro; o excluído a que todos negavam a graça agora a derrama com mais gosto do que todos que assistem.

Essa transgressão da gentileza é terrível demais para ser contemplada sem horror. Um universo que pode assim facilmente ser transtornado pelo amor e pela inclusão, um mundo assombrado dessa forma pela graça, é um mundo em que os homens terão de abrir mão de todas as suas seguranças. Diante dessa possibilidade, todos são tomados de terror e de perplexidade.

É aqui, diante desta glória, que devemos decidir não discutir o cessacionismo, a doutrina que postula que os milagres da era apostólica deixaram (ou não, discute-se) de acontecer nos nossos dias. Porque aqui está absolutamente declarado, escancarado além de qualquer dúvida, que a inclusão não foi resultado do milagre; a inclusão foi em si mesma o milagre – “e reconheceram-no como o mesmo que estivera sentado à porta do templo”.

Todos os milagres de Jesus e dos apóstolos devem ser entendidos retroativamente a partir dessa chave de compreensão. Jesus, que recusou-se diante da tentação a produzir sinais que tornassem evidentes o seu poder e a glória da sua vocação, não recusou-se a cuspir na terra para fazer lama e a tocar a pele crestada de um leproso a fim de fazer brotar a inclusão. Em termos estritos, os milagres de Jesus não são manifestações de poder: são instâncias de inclusão. Conhecendo a glória da nossa vocação, Jesus foi capaz de dizer sem exagero que seus discípulos fariam “sinais maiores do que esses” – porque nosso chamado é o de implantar um mundo inclusivo que Jesus em seus milagres apenas sugeriu.

Deve ficar portanto entendido que milagres só acontecem quando o amor é colocado em prática, e que milagres são o amor colocado em prática. A gentileza é por excelência a manifestação do poder de Deus, e é também o único verdadeiro sinal que Jesus dignou-se a apresentar.

Basta ao discípulo ser como o mestre: o sinal divino e o divino selo são a inclusão do outro, pelo que os milagres só cessam de acontecer quando deixamos de incluir. O cessacionismo depende, para ser válido, da nossa omissão. Arrepender-se é mudar o mundo, e pecar é omitir-se.

Mas neste ponto o homem agraciado para de repente de cantar e de saltar e corre para se abrigar entre seus amigos. Ele entendeu que não está mais sozinho e que nisso consiste a dádiva que recebeu, e compreende ao mesmo tempo que nada há de mais sério do que ganhar um presente.


PAULO BRABO

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