domingo, 27 de dezembro de 2009

Dar a Luz a Si Mesmo ... Continuação



No judaísmo tradicional, o primogênito, em hebraico o rompedor de matriz, pertencia a Deus. “IHWH falou a Moisés: Consagra a mim todos os primogênitos, todo aquele que por primeiro sai do útero materno entre os filhos de Israel, tanto dos homens como dos animais: ele pertencerá a mim” (Ex 13,1-2) e ainda “você reservará para IHWH todos os primogênitos do útero materno; e a IHWH pertencerá todo primogênito do sexo masculino, também dos animais que você possuir” (Ex 13,12).

Se a criança não fosse deixada a serviço de Deus no templo, deveria ser resgatada, re-comprada, pelos pais, mediante um sacrifício. “Os primogênitos humanos, porém, você os resgatará sempre. Amanhã quando seu filho lhe perguntar: Que significa isso? Você lhe responderá: Com mão forte IHWH nos tirou do Egito, da casa da servidão. O faraó se obstinou e não queria deixar-nos partir; por isso, IHWH matou todos os primogênitos do Egito, desde do primogênito do homem até o primogênito dos animais. É por isso que eu sacrifico a IHWH todo primogênito macho dos animais e resgato todo primogênito de meus filhos” (Ex 13.15).

Nesse rituais ricos de simbolismos, presente em muitas culturas, os filhos machos são circuncidados. Na cerimônia da circun-cisão, um anel de carne é retirado do prepúcio do pênis. Eis que o sexo sai também do envelope que o envolvia. Simbolicamente o prepúcio tem um aráter feminino; dentro dele o pênis se move. Presente em outras culturas, além da judaica, a prática da circuncisão torna alegoricamente o homem-mulher em homem. Torna-o carente de um anel feminino. Esse pênis, agora descoberto pela mulher, pelo feminino que lhe falta.

Deus escolhe para marcar o homem no seu Ser, na sua carne, seu sexo, seu lugar de união íntima com a mulher. Trata-se realmente de uma cisão e não somente de uma marca. Essa cisão é diferenciadora sexual (diferenciação terciária) e paradigmática da união sexual com a mulher e não de uma circum-separação. Essa cisão cria a marca da união, a busca da aliança, esse anel símbolo do casamento que divide o dedo em dois.

A Jesus correspondia plenamente a lei judaica: era macho e primogênito de Maria e José. Pertencia a Deus, e seus pais têm que re-comprá-lo, resgatá-lo no Templo. Lá Simeão o toma nos braços, louva a Deus, maravilha a todos com suas palavras, mas diz a Maria: “Ele será um sinal de contradição. Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma” (Lc 2,27.33). Como, fora da tradição islâmica e judaica, refletir e agir simbolicamente sobre os filhos como algo que não nos pertence de forma não diferenciadora como na circuncisão?

Como já foi evocado, Esaú simboliza também a humanidade com sua túnica de pele, em sua animalidade. Todos somos homens-prepúcio. Simbolicamente, todos somos chamados a circuncisão. Todos somos chamados a nos cingir do Homem revestido de pele e de suas muletas parentais, símbolo da dualidade. Não é simples sair do labirinto do molde e da matriz parental. A saída esta no centro, no centrar-se em si mesmo, em seu Ser.
Na simbologia, o tema do labirinto e da orientação espacial tem sua plenitude na estrutura interna dos ouvidos, na “cabeça” do ouvido, constituída pelos labirintos ossosos e membranosos.

O umbigo exprime um primeiro ponto na arquitetura do corpo humano. Mas a transformação do eu, que se opera no centro do labirinto, afirma-se definitivamente no dia do fim da viagem. A marca da vitória é a superação das dicotomias entre trevas e luz, perecível e eterno, inteligência e instinto, saber e violência cega. É na luta e na dor, que damos a luz a nós mesmos, pois as marcas da sujeição parental podem ser terríveis, e o umbigo é uma cicatriz indelével do vínculo parental.

Corpo
Evaristo Eduardo de Miranda

3 comentários:

  1. Que belo texto, não? É toda essa riqueza simbólica que existe nas Escrituras que fazem dela ser o que é. O simbólico não é sinônimo de mentira, fábula ou coisa parecida. O símbolo é a linguagem da alma e do espírito. Quem despreza o símbolo, despreza a possibilidade de mergulhar num mundo extra-sensorial, onírico, mas nem por isso, menos verdadeiro do que o mundo "real".

    abração!

    ResponderExcluir
  2. Concordo contigo, amigo filosofo dos mitos e simbolos Eduardo. rsrsrsrs

    É bem melhor, mais rico, mais coerente, vivo e significativo, ver a biblia como simbolo de mitos.

    Fazendo-se isto, não precisamos fazer ginstica com a mesma, para provar ou desprovar as inumeras contradições do texto sagrado.

    Abraços

    Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.

    ResponderExcluir
  3. A minha enorme atração pelo velho testamento não são a sua possível riqueza de símbolos e alegorias em livros como o Genesis e levitico, mas pela narração das historia dos personagens, pois para mim ali é tudo muito humano,(eles amavam, odiavam, defendiam a sua nação, sua honra, se apaixonavam, traiam, se arrependiam, em fim: eram humanos) diferente da neurose da batalha espiritual apresentada principalmente por Paulo.

    Não poso negar a riqueza de significados dos ritos dos judeus como, por exemplo, a circuncisão, mas quero viver não da força espiritual dos símbolos, mas como eu vivo hoje na imensa sensação de que em mim se repete a mesma intensidade de fé que eles tiveram, sem se preocuparam em serem espirituais ou santos, mas apenas e simplesmente em serem honestos, pois o que valia naqueles tempos era a integridade de um homem,e não a sua castidade ou capacidade de autonegação.

    ResponderExcluir