quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Sem Contabilidade


SEM CONTABILIDADE


Uma pessoa tinha comprado casas centenárias, onde cada morador havia pintado a casa de acordo com o seu gosto. Assim, ele não queria pôr vestido novo sobre vestido velho. Foram necessárias varias raspagens, para que a parede original aparecesse.


Nós. Casas. Vão-nos pintando pela vida afora até que memória não mais existe do nosso corpo original. O rosto? Perdido. Máscaras de palavras. Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender.

Nós só vemos aquilo que somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são puros, dignos de confiança, que eles realmente vêem as coisas tais como elas são. Puro engano. Os olhos são pintores: eles pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho de trevas vê mundo negro.

Nem Deus escapou. Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se interditou aos homens fazer sobre ele qualquer exercício de pintura, segundo mandamento, ”não fará para ti imagens”, tendo sido proibido até, com pena de morte, que seu próprio nome fosse pronunciado. Mas os homens desobedeceram. Desandaram a pintar o grande mistério como quem pinta a casa. E, a cada nova demão de tinta, mais o mistério se parecia com a cara daqueles que o pintavam. Até que o mistério desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sob a montanha de palavras que os homens empilharam sobre o seu vazio. Cada um pintou Deus do seu jeito.
Disse Angelus Silesius: o olho pelo qual Deus me vê é o mesmo olho através do qual eu vejo Deus. E assim Deus virou vingador que administra um inferno, inimigo da vida que ordena a morte, eunuco que ordena a abstinência, juiz que condena, carrasco que mata, banqueiro que executa débitos, inquisidor que acende fogueiras, guerreiro que mata os inimigos, igualzinho aos pintores que o pintaram.

E aqui estamos nós diante desse mural milenar gigantesco onde foram pintados rostos que os religiosos dizem ser rostos de Deus. Deus não pode ser assim tão feio. Deus tem de ser bonito. Feio é o cremulhão, o cão, o coisa-ruim, o demo. Retratos de quem pintou, isso sim. Menos que caricatura. Caricatura tem presença. Máscaras. Ídolos. Para se voltar a Deus, é preciso esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a tinta.
Os que não perderam a memória do mistério se horrorizaram diante dessa ousadia humana. Denunciaram. Houve um que gritou que Deus estava morto. Claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele quarto de horrores. Gritou que nós éramos os assassinos de Deus. Foi acusado de ateu. Mas o que ele queria, de verdade, era quebrar todas aquelas máscaras par poder de novo contemplar o mistério infinito.

Outro que fez isso foi Jesus.”Ouviste o que foi dito aos antigos; eu porem vos digo...” O deus pintado nas paredes do templo não combinava com o Deus que Jesus via. O deus sobre o que ele falava era horrível às pessoas boas e defensoras dos bons costumes. Dizia que as meretrizes entrariam no reino à frente dos religiosos. Que os beatos eram sepulcros caiados: por fora brancura, por dentro fedor. Que o amor valia mais do que a lei. Que as crianças são mais divinas que os adultos. Que Deus não precisa de lugares sagrados – cada ser humano é um altar, onde quer que esteja.

Ele fazia isso de forma mansa. Contava estórias. Uma delas, os pintores de parede lhe deram o nome de Parábola do Filho Pródigo. É sobre um pai e dois filhos. Um deles, o mais velho, todo certo, de acordo com o figurino, cumpridor de todos os deveres, trabalhador.

O outro, mais novo, malandro, gastador irresponsável. Pegou sua parte da herança adiantada e se mandou pelo mundo, caindo na farra e gastando tudo. Acabou a dinheiro, e veio à fome, foi tomar conta de porcos. Aí se lembrou da casa paterna e pensou que lá os trabalhadores passavam melhor do que ele. Imaginou que o seu pai bem poderia aceitá-lo como trabalhador, já que não merecia mais ser tido como filho. Voltou. O pai o viu de longe. Saiu correndo ao seu encontro, abraçou-o e ordenou uma grande festa com música e churrasco. Para os pintores de parede a estória poderia ter terminado aqui. Boa estória para exortar os pecadores a se arrepender. Deus perdoa sempre. Mas não é nada disso. Tem a parte do irmão mais velho. Voltou do trabalho, ouviu a música, sentiu o cheiro do churrasco, ficou sabendo do que acontecia, ficou furioso com o pai, ofendido, e com razão. Seu pai não fazia distinção entre credores e devedores. Fosse o pai como um confessor e o filho gastador teria, pelo menos, de cumprir uma penitência.

A parábola termina num diálogo suspenso entre o pai e o filho justo. Mas o suspense se resolve se entendermos as conversas havidas entre eles. Disse o filho mais moço ao pai: ”Pai, peguei o dinheiro adiantado e gastei tudo. Eu sou devedor e tu és credor”.Respondeu-lhe o pai: ”Meu filho, eu não somo débitos”.Disse o filho mais velho ao pai:”Pai, trabalhei duro, não recebi meus salários, não recebi minhas férias e jamais me deste um cabrito para me alegrar com meus amigos. Eu sou credor, tu és devedor.” Respondeu-lhe o seu pai:”Meu filho, eu não somo créditos.”

Os dois filhos eram iguais um ao outro, iguais a nós: somavam débitos e créditos. O pai era diferente. Jesus pinta um rosto de Deus que a sabedoria humana não pode entender. Ele não faz contabilidade. Não soma nem virtudes nem pecados. Assim é o amor. Não tem porquês. Sem razões. Ama porque ama. Não faz contabilidade nem do mau nem do bem. Com um Deus assim, o universo fica mais manso. E os medos se vão. Nome certo para a parábola: ”Um pai que não sabe somar”.Ou: ”Um pai que não tem memória...”.

Rubens Alves

Nele.
Que não soma créditos e nem débitos.
Wagner

12 comentários:

  1. E fizeram a deus conforme a suas imagens e semelhanças, a imagem do homem o fizeram.

    Cara eu não posso ler essas coisas, isso é muito bom e mata minha criatividade de descobrir só.

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  2. Amigo Wagner, devagarzinho vou lendo todos os textos do seu blog.


    Mas este aqui, não é "UM" texto, ele é "O" texto!


    Cara, eu fiquei de boca aberta, com tamanha maestria e brilhantíssimo do nosso amigo Rubem Alves.


    Se eu for, comentar ti ti por ti ti desse texto, faria uns três comentários longuíssimos, como estou meio sem tempo agora, vou destacar as partes, que considero primordiais.


    1-Nosso olhos são nossos espelhos:
    O problema não esta no que estamos vendo, mas em quem esta vendo.

    Ou seja, os nossos olhos nos denúncia como nós somos no mais intimo do nosso ser.

    Na verdade, vou mais além, com nossos olhos projetamos no outro o que no mais escondido do coração se é.

    Somos o que vemos, e vemos o que somos.



    2-Não vemos Deus, e por isso, o pintamos:
    Como Deus-mesmo é impossível de se desvendar, criamos conceitos os mais diversos sobre Ele.

    Mas ai é que esta o segredo.

    Como vemos Deus, mostra como nós somos.

    Nossos conceitos sobre Deus, não passam de um reflexo no espelho, que mostra o que somos.

    Assim como se pensa Deus, assim se é o homem!



    3-Qual o seu conceito sobre Deus?:
    Ou mais precisamente, amigo Wagner, como você pinta Deus?
    Quais as “cores de tintas” que você “pintou ou pinta” Deus?

    A minha tinta se chama Cristo, no mais, toda teologia – mesmo bíblica – que contraria a imagem da pessoa Cristo, eu descarto, jogo fora.



    4-Nosso relacionamento com Deus, esta embasado na nossa visão dEle:
    A frase do Angelus Silesius: “O olho pelo qual Deus me vê é o mesmo olho através do qual eu vejo Deus”, é espetacular!

    Assim como concebo Deus na minha mente, será a maneira como conceberei que Deus concebe de mim.

    Ou seja, se eu vejo um Deus-vingador-mostro, logo penso que Deus pensa coisas horríveis de mim!



    5-Deus não soma créditos e nem débitos:
    Isso eu chamo de graça!

    A graça, é um conceito que não é encontrado em nenhuma religião do mundo.

    Sabe por quê?

    Porque é próprio da religião – principalmente os evangélicos – alicerçar toda a sua lógica no desempenho humano, de causa e efeito.

    Sabe por quê?

    Nenhuma religião sobrevive se não tiver sacrifícios, leis e mecanismos de favor ou castigos em relação a divindade.

    A lógica religiosa:

    Quer aplacar a ira divina? Então faça sacrifícios.

    Quer conquistar um favor da divindade? Então traga oferendas.

    Mas com Deus – pelo menos com o que Cristo nos revela – é pura graça.

    Não há méritos, como deméritos para com Deus.



    Façamos o que tiver que fazer, por pura gratuidade, sem medos e sem recompensas, mas por pura gratidão aquele que nos amou e continuará nos amando, fazendo ou deixando de fazer!


    Um abraço carinhoso

    Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.

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  3. Gresder!
    Tudo bem amigo?

    Respondendo:

    Temos que matar todas as nossas tentativas (criatividades)de tentar descobrir só.
    O meu receio é exatamente dogmatiza-lo, e como concequência, querer que outros trilhem pelo mesmo caminho. Já fiz isso muitas vezes, para descobrir depois que tudo aquilo que eu defendia era fruto de uma doença ainda instalada na minha alma. O caminho da desconstrução é muito mais doloroso e difícil. Não tente construir nada fora de você, pois correria o risco de criar uma outra ortodoxia.

    Um abraço

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  4. Marcio e Gresder
    Esse texto me impressiona. Quando li pela primeira vez chorei muito. Eu, por gostar mais da teologia católica e liberal, sou rotulado das piores coisas e adjetivos, e por gente que nem conhece o significado disso.
    A maioria esmagadora dos evangélicos querem caminhar pelo caminho da religião de troca e sacrifícios.

    Qual o seu conceito sobre Deus?:
    Ou mais precisamente, amigo Wagner, como você pinta Deus?
    Quais as “cores de tintas” que você “pintou ou pinta” Deus?

    Exatamente o erro é querer pintar Deus. Deus não se pinta. Quanto a mim, já joguei o pincel pra longe da minha alma.
    Adoro sem cor, adoro sem querer pinta-lo pra ninguém, adoro pela cor que ele mesmo me pintou do lado de dentro. Essa cor serve só pra mim e para mais ninguém, e se tiver que colorir a vida de alguém, espero que a própria pessoa encontre Nele a cor, o fruto, a graça e a textura que servirá única e exclusivamente pra ele.
    A minha oração é que todos encontrem o seu caminho e a sua cor Nele, sem fazer da sua experiência a do outro.

    Um abraço

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  5. Amigo Wagner
    Eu também confesso o meu pecado, de gostar da teologia católica e liberal. Rsrsrsrsrs


    Mas fazer o que, os caras são os melhores mesmo.


    Amigo, posso discordar de você só um pouquinho? Rsrrsrsrsrs


    Sua fala: “Exatamente o erro é querer pintar Deus.”


    Eu não acho errado querer pintar Deus, o errado é conceber idéias paranóicas e neuróticas de um Deus vingador, assassino e mostro.


    Como diz o próprio Rubem Alves: “As nossas idéias não mudam Deus, mudam a gente”.


    Sua fala: “Deus não se pinta. Quanto a mim, já joguei o pincel pra longe da minha alma.”


    Amigo Wagner, isto é impossível – pelo menos, na minha humilde concepção – você precisa ter algum ponto de referencia até mesmo para Deus.


    Pois até mesmo, quando dissemos Deus, dissemos com algum significado e sentindo, vem alguma coisa na nossa mente finita e limitada.


    Se você diz Deus é um mistério, você já esta o pintando.


    Quando você se ajoelha para orar a Deus – não sei se você ainda ora, pois eu confesso que já faz um bom tempo que não oro nada para Deus. Rsrsrsrs – você tem que parti de algum principio em Deus, para que você possa se relacionar com Ele.


    O absolutismo aplicado em Deus, o torna equivalente a não existência.


    Porque se Deus é tudo, segue-se que Ele não é nada.


    Sei que vários homens, em varias épocas e lugares, pintaram a Deus de modo tão cruel e mesquinho.


    Mas isto, não é argumento para se dizer que Deus não pode ser pintando.


    Ademais, já concordamos que a imagem (ou seja, pintura) de Deus mais poderosa, digna, bela e conceitual é Jesus Cristo.


    Daí eu ter sugerido, pintarmos Deus, com aquilo mesmo em que Ele se pintou, sua humanidade.


    Pense com muito carinho meu amigo Wagner, sobre tudo isto que eu disse – tentei dizer, não sei se fui totalmente compreensivo em minhas palavras – e depois me responda.


    Abraços

    Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.

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  6. Marcio
    A única tinta realmente possível é aquela que na individualidae de cada um, e por Sua graça, Ele se mostra com a cor que ele quer. Sendo assim a cor quem determina é Ele e não nós.
    Sobre que fundamentos pintaríamos? As fontes não temos. A Bíblia foi construída. Os concílios decidiram o que deveríamos saber.
    Meu amigo, fique contente de Ele ter te encontrado, porque nem isso é mérito nosso. O máximo que vamos conseguir é morrer tenando, e sempre correndo o risco de também dogmatiza-lo, querendo que todos O pinte da nossa cor.
    Viu o texto do Rubem "cada morador pinta a casa do seu gosto" CUIDADO COM ISSO. Se aconteceu com outras pesoas, pode acontecer com a gente.

    Um abraço

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  7. Márcio tu não ora mais? nem eu!!

    Quer dizer... não oro de joelhos!!!

    mas nunca meu espírito orou tanto depois que eu parei de orar...

    Wagner não quero ser seu seguidor, somente seu colega virtual e amigo de fé, passa lá também.

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  8. "pois aprendi que na blogfera você tem que conquistar amigos e não “seguidores”.

    Copiando as tuas próprias palavras.
    É melhor tê-lo como amigo do que como seguidor, porque a maioria dos seguidores não são amigos.
    Vamos tentar construir pontes, sabendo que evangelho começa sempre na horizontal e nunca na vertical.
    Um abraço

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  9. Gresder, você captou a mensagem........


    Wagner
    Então concordamos que Deus é, e deve ser pintando, pois o que temos dele são faíscas de um vasto incêndio, ou partículas de um vasto e imenso oceano.


    O que não devemos fazer é dogmatizá-lo, acorrentando-o a uma vertente teológica.


    E as tintas quem fornece é o próprio Deus, e o pintar é singular e varia de pessoa para pessoa, e devemos respeitar isso.


    Mais me diga, partindo da premissa que você tem a sua cor de Deus, pois você mesmo reconhece isto:” Essa cor serve só pra mim e para mais ninguém, e se tiver que colorir a vida de alguém, espero que a própria pessoa encontre Nele a cor.....” só para que eu possa aprender um pouco mais, sobre as variadas idéias sobre Deus, qual é então a sua cor??



    Aguardando resposta..................


    Um abraço

    Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.

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  10. Deus não deve ser pintado, porque só é identificável para nós (porque vem dele) e não para os outros.
    A cor que Deus nos pinta se observa na vida; e essa vida vivida é o testemunho do cuidado e da beleza desse encontro. Somos casas pintadas (devemos cuidar muito bem dessa tinta) como disse Paulo e esse testemunho é a referência do amor que nos alcançou e sem precisar que outros tenham a mesma textura e cor.
    No caminho, como luz na escuridão, mostramos a beleza que começa lá dentro, exalando o bom cheiro da tinta sem que necessárimete vejam a cor.
    As cores são infinitas e que bom que seja assim. Paulo disse aos Galatas para que eles tivessem cuidado para não serem pintados novamnete pelos homens.
    Que seja assim.
    Um abraço

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  11. Olá Wagner: Passei por aqui e gostei muito do que vi. O texto só vem ratificar tudo que estava em debate no Blog do Gresder.

    Deus se revela em Amor na pessoa bendita de Jesus Cristo...Quem me vê, vê o Pai...Eu e o Pai somos um.

    Os comentarios criticos do Wagner não revelam o verdadeiro Wagner; Seu Blog o revela. Parabens.

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  12. Oí Jair!
    Que bom você por aqui!

    Tenho textos maravilhosos por aqui. Podemos refletir bastante porque essa é a intenção do blog e não de debates.
    Seja muito edificado, e te espero sempre por aqui.

    Um abraço

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