sábado, 8 de agosto de 2009

SEM CONTABILIDADE




SEM CONTABILIDADE



Uma pessoa tinha comprado casas centenárias, onde cada morador havia pintado a casa de acordo com o seu gosto. Assim, ele não queria pôr vestido novo sobre vestido velho. Foram necessárias varias raspagens, para que a parede original aparecesse. Nós. Casas. Vão-nos pintando pela vida a fora até que memória não mais existe do nosso corpo original. O rosto? Perdido. Máscaras de palavras. Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender. Nós só vemos aquilo que somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são puros, dignos de confiança, que eles realmente vêem as coisas tais como elas são. Puro engano. Os olhos são pintores: eles pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho de trevas vê mundo negro. Nem Deus escapou. Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se interditou aos homens fazer sobre ele qualquer exercício de pintura, segundo mandamento, ”não fará para ti imagens”, tendo sido proibido até, com pena de morte, que seu próprio nome fosse pronunciado. Mas os homens desobedeceram. Desandaram a pintar o grande mistério como quem pinta a casa. E, a cada nova demão de tinta, mais o mistério se parecia com a cara daqueles que o pintavam. Até que o mistério desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sob a montanha de palavras que os homens empilharam sobre o seu vazio. Cada um pintou Deus do seu jeito.Disse Angelus Silesius: o olho pelo qual Deus me vê é o mesmo olho através do qual eu vejo Deus. E assim Deus virou vingador que administra um inferno, inimigo da vida que ordena a morte, eunuco que ordena a abstinência, juiz que condena, carrasco que mata, banqueiro que executa débitos, inquisidor que acende fogueiras, guerreiro que mata os inimigos, igualzinho aos pintores que o pintaram.E aqui estamos nós diante desse mural milenar gigantesco onde foram pintados rostos que os religiosos dizem ser rostos de Deus. Deus não pode ser assim tão feio. Deus tem de ser bonito. Feio é o cremulhão, o cão, o coisa-ruim, o demo. Retratos de quem pintou, isso sim. Menos que caricatura. Caricatura tem presença. Máscaras. Ídolos. Para se voltar a Deus, é preciso esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a tinta.Os que não perderam a memória do mistério se horrorizaram diante dessa ousadia humana. Denunciaram. Houve um que gritou que Deus estava morto. Claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele quarto de horrores. Gritou que nós éramos os assassinos de Deus. Foi acusado de ateu. Mas o que ele queria, de verdade, era quebrar todas aquelas máscaras par poder de novo contemplar o mistério infinito.Outro que fez isso foi Jesus.”Ouviste o que foi dito aos antigos; eu porem vos digo...” O deus pintado nas paredes do templo não combinava com o Deus que Jesus via. O deus sobre o que ele falava era horrível às pessoas boas e defensoras dos bons costumes. Dizia que as meretrizes entrariam no reino à frente dos religiosos. Que os beatos eram sepulcros caiados: por fora brancura, por dentro fedor. Que o amor valia mais do que a lei. Que as crianças são mais divinas que os adultos. Que Deus não precisa de lugares sagrados – cada ser humano é um altar, onde quer que esteja.Ele fazia isso de forma mansa. Contava estórias. Uma delas, os pintores de parede lhe deram o nome de Parábola do Filho Pródigo. É sobre um pai e dois filhos. Um deles, o mais velho, todo certo, de acordo com o figurino, cumpridor de todos os deveres, trabalhador. O outro, mais novo, malandro, gastador irresponsável. Pegou sua parte da herança adiantada e se mandou pelo mundo, caindo na farra e gastando tudo. Acabou a dinheiro, e veio à fome, foi tomar conta de porcos. Aí se lembrou da casa paterna e pensou que lá os trabalhadores passavam melhor do que ele. Imaginou que o seu pai bem poderia aceitá-lo como trabalhador, já que não merecia mais ser tido como filho. Voltou. O pai o viu de longe. Saiu correndo ao seu encontro, abraçou-o e ordenou uma grande festa com música e churrasco. Para os pintores de parede a estória poderia ter terminado aqui. Boa estória para exortar os pecadores a se arrepender. Deus perdoa sempre. Mas não é nada disso. Tem a parte do irmão mais velho. Voltou do trabalho, ouviu a música, sentiu o cheiro do churrasco, ficou sabendo do que acontecia, ficou furioso com o pai, ofendido, e com razão. Seu pai não fazia distinção entre credores e devedores. Fosse o pai como um confessor e o filho gastador teria, pelo menos, de cumprir uma penitência.A parábola termina num diálogo suspenso entre o pai e o filho justo. Mas o suspense se resolve se entendermos as conversas havidas entre eles. Disse o filho mais moço ao pai: ”Pai, peguei o dinheiro adiantado e gastei tudo. Eu sou devedor e tu és credor”.Respondeu-lhe o pai: ”Meu filho, eu não somo débitos”.Disse o filho mais velho ao pai:”Pai, trabalhei duro, não recebi meus salários, não recebi minhas férias e jamais me deste um cabrito para me alegrar com meus amigos. Eu sou credor, tu és devedor.” Respondeu-lhe o seu pai:”Meu filho, eu não somo créditos.”Os dois filhos eram iguais um ao outro, iguais a nós: somavam débitos e créditos. O pai era diferente. Jesus pinta um rosto de Deus que a sabedoria humana não pode entender. Ele não faz contabilidade. Não soma nem virtudes nem pecados. Assim é o amor. Não tem porquês. Sem razões. Ama porque ama. Não faz contabilidade nem do mau nem do bem. Com um Deus assim, o universo fica mais manso. E os medos se vão. Nome certo para a parábola: ”Um pai que não sabe somar”. Ou: ”Um pai que não tem memória...”.


Ruben Alves


Nele,

Que não soma créditos e nem débitos.


Wagner

2 comentários:

  1. Wagner!

    Texto espetacular! Bom pra quem tem a casa mais restaurada ao original!

    Aproveito a oportunidade para apresentar o Genizah: Um blog cristão diferente que oferece ótimo conteúdo protestante, muito humor e bom combate às heresias e ao sincretismo que vem solapando a igreja evangélica.

    Vamos nos seguir. Te vejo por lá!

    A Paz e o Bem!

    Abraços,

    Danilo Fernandes

    http://www.genizahvirtual.com/

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pelo comentário ... Já estamos juntos.
    Um abraço
    Wagner

    ResponderExcluir