domingo, 5 de julho de 2009

FUNDAMENTALISMO


Fundamentalismo




Deus criou os pássaros, deliciosos brinquedos de asas. Símbolos de liberdade, eles voam. Símbolos de beleza, eles são de muitas cores e muitos cantos. Símbolos de paz de espírito, eles não têm ansiedades. Jesus até disse que deveríamos ser como eles....
Havia pássaros de todo jeito: “amarelos canarinhos, com sete cores, as saíras, pequeninas corruíras, escandalosos bem-te-vis, delicados colibris, pintassilgos e andorinhas, tico-ticos, pica-paus e cardeais, pássaros pretos e pardais, negros jacus e urubus ...”
Todos lindos. Lindos por serem diferentes. Nas cores e nos cantos. Se fossem todos iguais seria um tédio! Todos amarelos? Todos verdes? Todos brancos?
Pois Deus, que é uno e múltiplo como o vitral da catedral, Deus, que ama as diferenças, criou pássaros de todas as cores para que eles, na sua diferença de cores e de cantos, formassem um vitral vivo em que sua beleza aparecesse.
Aconteceu, entretanto, que uma cobra lisa e torcida que estava enrolada no galho de uma árvore viu assentar-se num outro galho da mesma árvore um pássaro negro conhecido pelo nome de Urubu. A cobra começou uma conversa mole:
“Bom dia senhor Urubu. Que lindas são as suas penas, tão negras! Confesso não haver visto outro pássaro que pudesse se comparar ao senhor em beleza. É certo que o seu canto tão bonito quanto a cor de suas penas, o que faz do senhor a Fênix dessas florestas, a revelação plena e total da beleza divina. Imagino que Deus diz aos seus ouvidos coisas que ele não diz aos ouvidos de nenhum outro pássaro! Se Deus desejar falar aos mortais em linguagem de pássaro, estou certo de que o senhor será o seu porta-voz!”
O Urubu ficou encantado ao ouvir as palavras da cobra. E acreditou. Os vaidosos sempre acreditam nas palavras dos aduladores.
“É isso mesmo”, o Urubu falou consigo mesmo. “Cada pássaro tem um pedacinho de Deus. Só um pedacinho. Mas eu, Urubu, tenho a plenitude da beleza divina. Assim sendo, porque perder o meu tempo ouvindo o canto do sabiá, o canto do pintassilgo, o canto do canário?... O canto deles é uma nota solta. O meu canto é a sinfonia inteira! É até perigoso que eles fiquem por aí, cantando livres pelas matas e jardins. Porque pode ser que um ouvinte tolo fique gostando do seu canto e, assim, por amor a beleza pequena de uma nota, perca a beleza plena da sinfonia. É preciso que se saiba que o canto de todos os pássaros conduz ao meu canto! Para a glória de Deus!”
E foi assim que os urubus começaram uma operação de guerra contra os outros pássaros, sob alegação de que o seu canto desviava os demais bichos do pleno conhecimento da beleza divina. Espalhou-se pela floresta a palavra de ordem: “Todos os pássaros devem cessar o seu canto. Todos os pássaros devem cantar como os Urubus. Fora do canto dos Urubus não há salvação!”
A passarinhada morreu de rir. Sabias, pintassilgos e canários comentavam: “Os Urubus devem ter enlouquecido...” E nem ligaram. Continuaram a cantar como Deus havia ordenado que cantassem.
Os Urubus, enfurecidos com a arrogância e presunção dos pássaros que não reconheciam sua superioridade, reuniram-se em concílio e tomaram uma decisão: “Se não cantam como nós, porta-vozes de Deus, cantam contra nós, cantam contra Deus. E quem canta contra Deus não tem o direito de cantar”.
Mas que passarinho pode deixar de cantar o seu canto? O pedacinho de Deus que mora em cada um não descansa. Quer cantar! Eles continuaram a cantar.
Os Urubus se puseram a campo em defesa da beleza divina e de sua própria beleza. Começaram a perseguir com bicadas os pássaros que se atreviam a cantar o canto que Deus lhes ensinara. Era a única forma de fazê-los calar. Alguns pássaros se calaram por medo de serem expulsos da floresta a bicadas. Chegaram mesmo a esquecer de como era o seu canto. Mas o fato é que muitos dos que insistiram em cantar o seu próprio canto foram entregues a cobra que, como se sabe, adora comer pássaros...
O resultado foi que os pássaros de muitas cores e de muitos cantos fugiram daquela floresta sinistra. Foram em busca de outras florestas onde não houvesse Urubus e onde pudessem cantar todos os seus cantos, ao mesmo tempo, e diferentes, para que assim se ouvisse a Grande Sinfonia.
Quanto aos Urubus, ficaram sozinhos na sua floresta. Os bichos que moravam lá se mudaram, porque não agüentavam mais ouvir todo dia o mesmo canto monótono, sempre igual, sem variações, sem contraponto, sem improvisações. Quanto a Deus não é preciso dizer que floresta Ele passou a freqüentar...


Dogmatismo e Tolerância

Rubem Alves


Sinceramente, enxergar isso é libertador.

Wagner

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